Jorge Borges durante toda a vida sofreu de problemas de visão. Mesmo depois de várias operações não conseguia ler nem escrever... Mas admitia, com resignação, que na sua cegueira nada havia de dramático ou patético, comentando: "...esplêndida ironia de Deus em conceder-me a um só tempo oitocentos mil livros e a escuridão".
A figura do Bibliotecário cego, percorrendo com as mãos as estantes da Biblioteca Nacional de Buenos Aires, sabendo pelo toque e pela sua espantosa memória onde estavam os seus autores e os seus textos favoritos, sempre me fascinou. Tanto ou mais ainda como a sua admirável obra literária, a que até a falta de um Nobel veio - em minha opinião - dar mais prestígio.
As traduções do castelhano são de Fernando Pinto do Amaral, estudioso da obra de Borges.
Os meus Livros
Os meus livros (que não sabem que existo)
São uma parte de mim, como este rosto
De têmporas e olhos já cinzentos
Que em vão vou procurando nos espelhos
E que percorro com a minha mão côncava.
Não sem alguma lógica amargura
Entendo que as palavras essenciais,
As que me exprimem, estarão nessas folhas
Que não sabem quem sou, não nas que escrevo.
Mais vale assim.
As vozes desses mortos
Dir-me-ão para sempre.
Jorge Luis Borges, in "A Rosa Profunda"
O Apaixonado
Luas, marfins, instrumentos e rosas,
Traços de Dúrer, lampiões austeros,
Nove algarismos e o cambiante zero,
Devo fingir que existem essas coisas.
Fingir que no passado aconteceram
Persépolis e Roma e que uma areia
Subtil mediu a sorte dessa ameia
Que os séculos de ferro desfizeram.
Devo fingir as armas e a pira
Da epopeia e os pesados mares
Que corroem da terra os vãos pilares.
Devo fingir que há outros.
É mentira. Só tu existes.
Minha desventura,
Minha ventura, inesgotável, pura.
Jorge Luis Borges, in "História da Noite"
Nostalgia do Presente
Naquele preciso momento o homem disse: «O que eu daria pela felicidade de estar ao teu lado na Islândia
sob o grande dia imóvel e de repartir o agora como se reparte a música ou o sabor de um fruto.»
Naquele preciso momento o homem estava junto dela na Islândia.
Jorge Luis Borges, in "A Cifra"
E sobre o Tradutor Fernando Pinto do Amaral, personalidade reconhecidíssima da nossa vida literária:
Fernando Pinto do Amaral (n. 1960), depois de frequentar a Faculdade de Medicina, que abandonou por falta de vocação, licenciou-se na área das literaturas românicas, tendo mais tarde concluído o doutoramento nessa mesma área. É professor na Faculdade de Letras de Lisboa, tradutor e crítico literário. Colabora regularmente no jornal "Público" e nas revistas "Ler" e "Colóquio Letras". Tem comissariado alguns eventos dedicados à literatura, nomeadamente , "100 Livros do Século", ou mais recentemente a comitiva de escritores portugueses no Salão do Livro de Genève. Em 1990 publicou o seu primeiro livro de poesia, "Acédia", a que se seguiram "A Escada de Jacob" (1993), "Às Cegas" (1997) e "Poesia Reunida 1990-2000". De entre os seus ensaios destaque-se "O Mosaico Fluido - Modernidade e Pós-modernidade na Poesia Portuguesa mais Recente" (1991). Traduziu, entre outros, Baudelaire, Verlaine, Borges.
Nenhum comentário:
Postar um comentário