quarta-feira, março 09, 2011

O Amigo Solavancos

Estava no Cemitério, neste Terça de Carnaval, com a minha Santa cá de baixo, quando o meu olhar perdido  -  à espera que ela acabasse de compor as flores nas diversas campas que por lá trazemos - se fixou numa lápide ali perto da de meu Pai: J. Neto Solans, algum descendente de espanhóis ou centro-americanos, sepultado no Estoril..

Pela proximidade do apelido logo me veio à memória o amigo Solavancos (assim mesmo!) lá de cima da Serra e as peripécias que o envolviam. Nunca o conheci pessoalmente mas trago aqui a história dele tal e qual me foi contada, assumindo que pode haver , aqui e ali, algum exagero causado pela amizade.

Era amigo de meu sogro e do avô de minha muher, e tinha a fama ( e algum proveito) de nunca ter trabalhado em toda a sua vida de boémio serrano. Apenas se entretinha a gastar o que os Pais, Tios e Avós lhe tinham deixado em sorte. Eles,  que eram pessoas de teres e de haveres, tinham passado as vidas a acumular e a poupar para que o único descendente e herdeiro  (ele costumava dizer a brincar que "era o rio onde tinham vindo parar todos os afluentes") o gastasse alegremente, em copos , em carros e em festas com os Amigos.

Chamavam-lhe o "Solavancos" porque, depois das 3 da tarde, assim era o seu percurso pedonal ou de carro,  pelas ruas , fossem elas as de Seia, de Gouveia ou até da aldeia onde a minha família por afinidade vivia. Andava aos solavancos , não fosse o estupor do álcool passar-lhe alguma rasteira que o deixasse estendido ao comprido ou o fizesse bater com o carro nalguma parede mais "escorregadia"...

Nunca casou, viveu em desbunda desde os trinta e poucos anos, quando terá herdado, até aos sessenta e picos, quando morreu. Vendeu todas as terras que a família lhe deixou (melhor dizendo, "comeu-as e bebeu-as") excepto um olival que ofereceu ainda em vida à paróquia da terra de onde era o avô paterno.

Morreu com um ataque cardíaco fulminante. Não deu trabalho a ninguém... Dizia o sacristão que quando o levaram para casa (das poucas coisas que ainda era dele quando morreu) tinha um sobrescrito com o dinheiro para o funeral e  missas em cima de uma estante , e indicações sobre o fato com que queria ser enterrado. Deixou no banco ainda uma centena e meia de contos (naquele tempo um carro médio custava isso, mais ou menos...) e uma carta dirigida ao Reitor de Seia , com instruções para serem repartidos por duas ou três instituições de caridade.

Naqueles trinta anos e tal de vida, o amigo "Solavancos" repartiu o que era dele pelos outros, fez a alegria de muitos estabelecimentos ( tabernas e restaurantes sobretudo) e comprou 3 ou 4 carros estimulando assim o comércio local. Nesses automóveis muitas vezes transportou para o Hospital quem tinha necessidade e não podia pagar táxi.

O Funeral dele foi enorme! Para além dos Amigos e dos representantes das instituições que dotou, em vida ou em morte, apareceram muitos serranos,tocados pela vida de um Homem que , aparentemente, tinha sido bem ao contrário do que o "manual oficial do regime" apregoava: Trabalho àrduo, discrição, honradez na pobreza, poupar para o futuro  e esperar pela "recompensa" no outro mundo.

Ora tinha ali aparecido um "Solavancos" que fizera gato-sapato de tudo isso. Nunca trabalhou, morreu de papo cheio  e nem perdeu um minuto a pensar no que cá deixaria...

Dei por mim a pensar nisto nesta altura do País em que o tal "manual do regime" parece estar outra vez na berra...

Os pobres (porque o eram de facto) serranos dos anos 60 entenderam que a vida  na Terra não podia ser apenas um "vale de lágrimas", devendo haver obrigatoriamente também lugar para o divertimento e para a  apreciação das coisas boas , e por isso despediram-se do "Solavancos" como se fosse um Herói.

Hoje, nestes estranhos anos do século XXI, teríamos nós coragem para fazer o mesmo? Para aclamar um "iconoclasta" como o fora antes do tempo este "Solavancos"?

 Ou desde logo intuimos que os "Solavancos" , se existirem mesmo actualmente fora da ficção,  são mas é todos gatunos, traficantes de droga ou de armas, gajos feitos com o Kadhafi, comilões à mesa com os Ministros, manteigueiros dos grandes de Angola,  corruptores ou outras coisas piores?

É pena e será injusto na maior parte dos casos... Mas são as teias que  a Crise tece... Quem gasta dinheiro nestas alturas é automaticamente conotado com esquemas fora da lei e publicamente condenado sem direito ao contraditório.

Por isso manda a prudência que se acautelem os "sinais exteriores de riqueza"...Pelo menos aqui no rectângulo. Se formos gastar para as Ilhas Fiji já não faz mal nenhum... Porque ninguém estará lá para ver e comentar.

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