quinta-feira, março 12, 2015

Na Guarda


Amanhã tenho reunião na "mais alta" para discussão dos últimos detalhes de um dos nossos próximos livros: "A Rota das Catedrais".
Enquanto afio o dente para o almoçinho no sempre amado Belo Horizonte aqui deixo um texto de Mestre Eduardo Lourenço (nascido em Rio Seco, Melo, Distrito da Guarda) que apesar de ser em prosa é de facto um grande poema homenageando o seu ( e nosso) amigo  Eugénio de Andrade por ocasião do seu desaparecimento.

Que grande pedaço de literatura!

A morte foi-lhe póstuma.

Como para sublinhar que não lhe dizia respeito.
Realíssima foi a sua longa agonia branca, o estar assistindo à sua vida sem poder fazer nada por ela. Nem nós, seus amigos, vendo o mais solar dos poetas a braços com esse crepúsculo sem manhã.
Vivo e consciente, contemplou a última metamorfose, da sua própria margem, aquela que uma luminosa vida de versos lhe construíra como a única barca imune ao negro esquecimento.

Aí permanecia o deus verde que sonhara o seu destino como quem dança.
Sem anjos e sem pecado.
Viera para inventar, cantando-se e encantando-se com o mundo, o seu próprio paraíso.

Do reino das sombras, só soube da ausência da luz original que elas são.

No cristal das palavras talhou o corpo dos poemas onde morria e ressuscitava.
Todas lhe eram caras mas mais aquelas que precisavam dele para serem saboreadas pelos outros, as mais discretas, as mais duras no seu silêncio, as que tocadas por ele se convertiam em chama perpétua.

As coisas mesmas, as mais banais, foram os seus símbolos.
Elas lhe bastaram para deixar na memória poética da nossa língua aquela "espécie de música" a que Óscar Lopes aludiu.
E é o sonho inalcançável de todo o poema.
No círculo encantado que de Bernardim conduz a Pessanha, Eugénio instalou a sua tenda.

Agora pode conversar de igual a igual com os seus astros tutelares.
E concentrar-se inteiro na haste da melancolia que evocou para nós.
Ave solar em plena luz.

Vence, 13 de Junho de 2005
Eduardo Lourenço

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