sexta-feira, agosto 20, 2010

Para Descansar a Vista

De Ruy Belo, o Grande Poeta, uma reflexão sobre a nossa vida de todos os dias e de como a tristeza , de tão normal e comezinha, nossa condição natural, pode nela ser incorporada e até reinventada, afinal, como  sintoma e medida de felicidade...


A mão no arado

Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias

Podem passar os meses e os anos, nunca lhe faltará

Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio

Oh como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição

É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas

Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro

É triste no outono concluir
que era o verão a única estação

Passou o solitário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas
 com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita

Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã
Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois

A tarde morre pelos dias fora

É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente.

Ruy Belo

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