Na Sexta Feira Santa ninguém anda pelos campos nem se visitam os Amigos. São tradições antigas que ficaram nos hábitos das gentes , mesmo depois do fervor religioso não ser já o que era.
É curioso que assim seja… As missas dominicais cada vez trazem menos gente, os homens e as mulheres só se aproximam do Sagrado por alturas do casamento, baptizado dos filhos ou mortes… Todavia estes antigos costumes de contenção e frugalidade, quer na mesa quer nos actos, ainda se mantêm.
Claro que não estamos já na altura em só se saía de casa neste dia havendo necessidade imperiosa. Mas mesmo assim os velhos hábitos custam a perder.
Os Amigos só esperam pela passagem da meia noite desta Sexta Feira Maior para cá virem a casa cumprimentar os recém-chegados, trocar novidades e…provar o Branco e o Tinto da vindima de 2009, ainda em depósito, mas já possibilitando ir bebendo umas cântaras dele.
Recordo-me que esta ida ao depósito um pouco temporâ não era passsatempo muito do agrado do meu Sogro, com medo que o “seu” vinho apanhasse ar e se estragasse com tanta mexida…
Mas os herdeiros actuais estão-se nas tintas para isso.
Do ponto de vista mais técnico, também estou de acordo com eles. O vinho prova-se pela espicha, pequena torneira na base dos depósitos, sendo negligenciável a quantidade de ar que entraria para dentro por essa pequena abertura.
Mas ainda há quem discorde…
Se o Tinto de 2009 está um Vinhão (como seria de esperar depois da análise ) havia que testar o Branco, feito de Malvasia, Encruzado e Borrada das Moscas, que me parece ser o nome que aqui dão à Bical.
Faz-lhe ainda falta um pouco mais de tempo no depósito, mas está já limpído, de sabor levemente ácido, limonado. E , nesta altura do ano em que na Adega estão 7º, nem precisa de frigorífico!
Esta “excursão” Pascal aos depósitos, na altura em que o meu sogro estava vivo e de boa saúde, há cerca de 15 anos atrás, tinha foros de aventura quase épica.
Tínhamos todos um certo respeito pelo Homem, que embora pequeno de estatura tinha um feitiozinho de alto lá com ele…
Costumava dizer: “- Quando tiver o vinho em condições de ser engarrafado tomem até banho nele que é para o lado em que durmo melhor! Mas assim à espicha Não! “
Sem o querer desfeitear havia que, mesmo assim, tratar de dar o eterno descanso a umas 6 garrafitas ( 3 de tinto e outras tantas de branco era o mínimo, para 4 amigos e mais o presunto, queijo e broa do Sabugueiro).
O problema é que a “fera” já sabia ao que íamos e punha logo à disposição dos malfeitores 2 garrafões do vinho do ano passado, fechando a porta da adega do vinho novo à chave.
A questão tinha de ser tratada com diplomacia e utilizando o velho aforismo: “ Daquilo que não souberes, nunca te podes vir a queixar”.
Ou seja, em linguagem mais chã e popular, havia que planear um roubo. Na linguagem do meu cunhado, nem tanto um roubo, mas sim “uma distribuição dos despojos pelos herdeiros, antes da abertura do testamento”.
Antes de chegarmos à Beira Alta já a conspiração estava em rumo.
Munido da chave original o “herdeiro” que vivia lá em casa tinha já ido a Gouveia mandar fazer um duplicado, pois em Seia era o “velho” muito conhecido e ainda podia haver falatório às quartas feiras, quando fosse à Cooperativa Agríciola e à Caixa (Geral dos Depósitos)...
Pela noite de Sexta-feira Santa abriamos a Adega, cometíamos o delito e escondíamos as garrafitas.
No Sábado de Aleluia, pela tardinha, chegavam os amigos. Improvisavámos uma cesta de piquenique, com tudo a que tínhamos direito no capítulo dos “secos”, e, depois de retirados os “molhados” do seu esconderijo , íamos todos juntos para um local retirado e sossegado, onde pudéssemos repousar até que as legítimas mulheres (por mor da tirania inescapável dos telemóveis, a pior patifaria que se inventou para pôr em perigo estas “escapadelas” e que davam nessa altura os primeiros passos) fossem à nossa procura com cara de caso, lá pelas 21.30h, mais coisa, menos coisa.
Este era o Plano.
Problema maior da sua concretização era o facto (bem conhecido) do meu sogro adorar estas pândegas e estar sempre à espera de ser convidado para o “entreacto”. Mas, como não conduzia, tinha de ser mesmo convidado para ir connosco. Não o convidávamos e pronto!
Ao princípio amuava. Mas ao fim de dois anos ou três com as mesmas exéquias , todos aqueles Sábados antes da Páscoa, começou a desconfiar…
Num certo ano deixou-nos “bazar” à vontade, mas de combinação com o compadre taxista (por acaso também dono da pequena venda que era o único Posto de Correio da aldeia) encetou de imediato uma perseguição digna do “Need for Speed”…
Ao chegarmos à arrecadação (tipo “palheiro”) onde costumávamos cometer o delito (numa outra quinta do “enganado”, a cerca de 5 km de nossa casa) mal sonhávamos que o duo do reumático vinha na nossa peugada, puxando ao máximo os 75 HP do tísico Peujeot 404 a diesel , único carro “ de praça” da aldeia.
“-Há lugar para mais dois, meus Senhores?”
Isto perguntaram, esgrimindo um Queijo da Serra com uns 2 kg, passaporte considerado suficiente para permitir a entrada na paródia.
O silêncio sepulcral que se seguiu foi tomado por aquiescência. Entraram e sentaram-se.
“-Belo Vinho! De quem é?” Perguntava o “impetrante” meu sogro, ao beber do seu próprio néctar, sem saber…
“-Foi aqui o Jorge que o trouxe, é do Pai dele” Respondeu o meu cunhado, com a primeira coisa que lhe veio à cabeça.
“-Pois, vê-se logo que foste à espicha do vinho do teu Pai, Jorge! Este é vinho novo e do bom! Mas não se deve tirar o vinho dessa maneira! Estraga o resto que fica no depósito!”
E o meu Sogro, num lampejo de lucidez repentino, acrescentou:
“-Mas o teu Pai não é advogado em Seia? Também faz vinho?”
O amigo Jorge teve uma das melhores tiradas da sua vida de estudante em Coimbra (sendo a palavra “estudante” algo exagerada para descrever aquilo que , de facto, o ocupava na “lusa Atenas”) :
“ – Oh Senhor Horácio, foi um Cliente que lhe deu o Depósito em paga de uma causa que ele ganhou.”
“- Olha, vou falar com o teu Pai. É capaz de ser muito vinho para a vossa casa. Se ele não quiser ficar com o depósito todo, eu compro-o. Belo Vinho!”
O frio que se fazia sentir no “Palheiro” desceu para aí uns 10 grauzitos, no mínimo. Valeu-nos, mais uma vez, o “estudante” de Coimbra:
“- Deixe-se disso Sr Horácio que 5 litros por dia não lhe chegam!”
“-Tá boa! Homessa! Quem diria Hein?? Um Homem de Leis...”
E lá saímos da aventura chamuscados mas não queimados… mas parece que quer o Taxista quer o meu Sogro nunca mais utilizaram os préstimos do Pai do Jorge nas suas muitas demandas, típicas daqueles tempos sem testamentos, de heranças mal enjorcadas e de primos e irmãos desavindos, que davam o sustento a tanto advogado serrano…
O Pai do Jorge (de quem não me recordo o nome) é que nunca percebeu o porquê da desfeita… e quem sabia também nunca lhe disse.
Et pour cause…