sexta-feira, fevereiro 26, 2016

Para Descansar a Vista debaixo de chuva



O tempo hoje está de feição para um bom livro ao pé da lareira.  Recordo com saudade o meu amigo  Rainha e como ele, um transmontano de Carrazeda,  se referia à sua lareira do Estoril.

Era mais ou menos assim: tenho uma lareira em casa, coisa que já não me acontecia desde que saí da aldeia! Tenho saudades do  frio cá fora e do conforto da lareira. Temos que inaugurar a lareira! E claro que terá de ser num dia de temporalMas aqui no Estoril já ando há dois Invernos à espera...Mas que pôrra!

Vim à procura de poetas mais modernos e encontrei uma "rapariga" do meu tempo: Ana Luisa Amaral, nascida em 1956,  professora associada no departamento de estudos anglo-americanos da Faculdade de Letras do Porto.

E escreve admiravelmente:

A Mais Perfeita Imagem

Se eu varresse todas as manhãs as pequenas
agulhas que caem deste arbusto e o chão
que lhes dá casa, teria uma metáfora perfeita para
o que me levou a desamar-te.

Se todas as manhãs
lavasse esta janela e, no fulgor do vidro, além
do meu reflexo, sentisse distrair-se a transparência
que o nada representa, veria que o arbusto não passa
de um inferno, ausente o decassílabo da chama.

Se todas as manhãs olhasse a teia a enfeitar-lhe os
ramos, também a entendia, a essa imperfeição
de Maio a Agosto que lhe corrompe os fios e lhes
desarma geometria. E a cor.

Mesmo se agora visse
este poema em tom de conclusão, notaria como o seu
verso cresce, sem rimar, numa prosódia incerta e
descontínua que foge ao meu comum.

O devagar do
vento, a erosão. Veria que a saudade pertence a outra
teia de outro tempo, não é daqui, mas se emprestou
a um neurônio meu, unia memória que teima ainda
uma qualquer beleza: o fogo de uma pira funerária.
A mais perfeita imagem da arte. E do adeus.

Ana Luísa Amaral, in 'A Arte de Ser Tigre' 


quinta-feira, fevereiro 25, 2016

Mexericar



A coscuvilhice tanto é macha como é fêmea.

E não me venham com tretas sobre a natural tendência das senhoras para bisbilhotar. Conheci e conheço muitos homens que são piores.

Normalmente esta secular actividade está ligada ao ócio, e como nos tempos antigos eram as senhoras comadres as que teriam mais tempo livre, talvez isso justificasse a fama ( e proveito) de serem praticantes fervorosas da fofoca.

Agora que tenho a santa em minha casa dei conta da quantidade de amigas da idade dela  que por lá passam para saber da saúde.  Ao princípio não as deixava entrar, dava-lhes as novidades pela janela. Mas isso não contentava as senhoras vizinhas... Queriam entrar, queriam falar e saber os detalhes todos do que se tinha passado no hospital.

São as "amigas da missa" as que iam com ela todos os domingos à missa na igreja de Santo António.

Quando cometi a imprudência de deixar entrar a primeira mal sabia que atrás daquela viria outra e outra e ainda outra... O mais engraçado é que como a minha mãe está um bocado baralhada (para não dizer outra coisa) a história que lhes vai contando nem sempre é a mesma.

Daqui têm surgido confusões, porque as senhoras vizinhas já de si , sem precisarem de nenhuma ajuda, "esticam" tudo o que ouvem, imaginemos então se as fontes não são fidedignas...

Um acidente psicótico passou a AVC. Este já era enfarte agravado.  E pouco depois, se não tenho cuidado, ainda a "matavam".

Recordo-me sempre do escudeiro Gonçalo Borges (o grande actor Costinha) no filme Camões, a dizer para Beatriz da Silva (Eunice Muñoz) , que pretendia salvar o poeta: "Eu senhora dona Beatriz? Perdoar a esse homem ? Que me matou?!"


quarta-feira, fevereiro 24, 2016

A Idade



Estou sem escrever aqui há dois dias em consequência de ter estado mais que ocupado com a saúde  da  minha "santa" cá de baixo. Não dou detalhes, porque não concordo em fazer deste local espelho de alma ou muro de lamentações.

Sempre tive a convicção que os bons momentos são para partilhar e os maus momentos são íntimos, para interiorizar. Mas aproveito a oportunidade para escrever sobre a "idade" e sobre a forma como a mesma nos vai afectando.

"Je suis incapable de concevoir l'infini et pourtant je ne puis pas  accepter le fini.  Je veux que cette aventure qui est ma vie ne termine jamais."
Simone de Beauvoir

À medida que vamos "entrando na idade"  a vida modifica-se.  Em qualquer das diferentes idades: na idade adulta, na idade média , na idade da sabedoria e na idade da bengala ou do  andarilho.

Não existem regras sobre quem entra,  como entra,  nem quando...Eu próprio por vezes tenho dúvidas sobre se já entrei na idade "adulta" (sobretudo de manhã ou ao almoço) mas quando acaba o dia sinto-me como se estivesse na fronteira da "sabedoria" para a "bengala", dependendo de como a ciática me tratou.

Dizem os americanos - peritos em listas e classificações - que nos tempos que correm a idade adulta atinge-se quando o jovem se estabelece por conta própria (sai de casa dos pais e tem emprego que lhe permite subsistir sozinho), a idade média será quando viu os filhos entrarem na Universidade (ou estarem empregados), a idade da sabedoria  ocorre quando fazemos saltar no colo os primeiros netos e, finalmente, a idade da bengala , será quando perdemos mais tempo nas salas de espera dos médicos e dos hospitais do que em outras actividades .

Se tivermos que pensar em anos seria mais ou menos assim e tendo em conta as circunstâncias actuais que infelizmente restringem o "sistema" em Portugal: 30, 55, 70, 80 anos.

Quando eu comecei nestas andanças a declinação dos limites anuais era diferente: Empreguei-me aos 21 anos, tive o filho aos 26 anos, este entrou na faculdade quando eu tinha 44. Netos é que nada ainda, pela incompetência do meu "senhorio". E bengala também já usei  e às vezes ainda uso quando a p*** da ciática aperta. Andarilhos é que por enquanto não (lagarto, lagarto) .

A forma como a nova geração vê a mais antiga também é influenciada por estes ritmos.  Vemos nos pais e mães formas de "vaca leiteira" (salvo seja),  para irmos esmifrando uns cobres em alturas de necessidade,  temos como garantido que eles (mais elas) tenham a disponibilidade para tomar conta dos netos e das casas.  Podemos dispor dos ensinamentos e da experiência em coisas tão diferentes como tratar dos arranjos em casa , orientarem a empregada, ensinarem a cozinhar ou ajudarem a compor um texto de carta para qualquer situação.

Até que chega o momento em que a situação se volta do avesso. A nova geração deixa de poder contar com a antiga para muitas dessas coisas, e, pelo contrário, tem de passar a dar parte daquilo que recebeu. E somos felizes quando temos tempo suficiente para "eles" receberem pelo menos tanto quanto nos deram.

 Começam estas andanças da última fase pela  mobilidade comprometida, e em consequência os nossos  idosos passam a vida em casa, com medo de saírem e caírem na rua. E continua inexoravelmente até que pode chegar a fase em que já não podem estar sozinhos.

Modernamente e graças aos avanços na geriatria em geral, com relevo pela prevenção cardiovascular, são cada vez mais os idosos que se encontram vivos mas dependentes. E para estes a sociedade ainda não  encontrou solução.

Acabaram as grandes famílias onde havia sempre em casa acompanhantes que não trabalhavam e que tinham como responsabilidade cuidar dos mais velhos.  Se estes forem ricos têm à disposição empregados dedicados ou lares de acolhimento decentes, se forem remediados ou pobres o panorama pode ser de fugir...

Pelo que faço minhas as palavras do povo : "até para morrer é preciso ter sorte".

sexta-feira, fevereiro 19, 2016

Para Descansar a Vista



Regresso a  Jorge de Sena para uma pequena reflexão em torno da forma como encaramos a vida de todos os dias. E acrescento um pensamento de Bansky: L’idéal serait de passer moins de temps à créer une image qu’il n’en faut aux gens pour la regarder.  

Devemos viver ao nosso ritmo, sem forçar as coisas.  Deixemos que seja a nossa obra ( de arte, ou seja qual for) a ditar o tempo que lhe devemos dedicar. Apenas ela.


Da Vida... não Fales Nela

Da vida... não fales nela,
quando o ritmo pressentes.
Não fales nela que a mentes.

Se os teus olhos se demoram
em coisas que nada são,
se os pensamentos se enfloram
em torno delas e não
em torno de não saber
da vida... Não fales nela.

Quanto saibas de viver
nesse olhar se te congela.
E só a dança é que dança,
quando o ritmo pressentes.

Se, firme, o ritmo avança,
é dócil a vida, e mansa...
Não fales nela, que a mentes.

Jorge de Sena, in 'Pedra Filosofal' 


quinta-feira, fevereiro 18, 2016

Uma caldeirada

Há caldeiradas que são para comer e há das "outras", as que levam aspas.

Exemplo de grande "caldeirada", com aspas,  pode ser a do Banif. Ou a do BES, ou a do BPN...E já me calo.

Também há as outras "caldeiradas" futebolísticas das quais a mais imponente tem que ser a dos Mr. Blatter e Mr. Platini. Agora suspensos (coitados, como pagarão a renda de casa e alimentarão os filhos?).

E como hoje joga o Sporting e o Porto nada mais digo sobre "caldeiradas da bola "para não me acusarem de destruir o moral das tropas a cargo dos generais Jesus e Peseiro.

Mas a ideia deste blog era mesmo dar uma receita de caldeirada para estes dias frios de inverno. Uma Caldeirada de Peixe, não das outras que se comem mas não levam barbatanas.

E mesmo das que têm barbatanas não falarei das de bacalhau, nem das "à fragateira", normalmente feitas com peixes de rio, ou ainda das de "enguias". Caldeirada feita de peixe fresco de mar. Isso é que vai ser o nosso almoço neste Domingo,

E adianto a receita para quem queira.

Receita que aprendi com mestre Mendonça do Beira Mar, embora como bom artista que varia a cena,  ele fosse dizendo que às vezes fazia uma puxadinha (refogado), das outras era tudo em cru , "dependendo dos peixes " (isso ainda compreendo) e "da companhia" (aqui é ficava eu mais intrigado).

O termo Caldeirada deve vir de "caldeiro" , a antiga panela de ferro onde se cozinhava. E a génese da receita tem que ter a ver com a actividade piscatória. Os pescadores saíam para a faina e tinham que comer a bordo. Levariam legumes, cebolas, batatas e tomate sobretudo, e o resto seria dado pelo Mar.

Ainda hoje existe a mania que uma boa caldeirada "à pescador" deve ser feita com água do mar. Bem, com a poluição ao pé da praia não sei bem se teríamos que ir para o limite das 200 milhas náuticas para recolher água limpa salgada...Na dúvida tire-se da torneira e ponha-se-lhe sal.

O tacho tem de ser de fundo espesso, preferencialmente de ferro ou de alumínio fundido. No fundo colocam-se sempre ameijoas ou berbigão com as cascas, para que o guisado não pegue.  Por cima a cebola velha, pimentos verdes, tomate maduro e alhos picados grosseiramente. Azeite, sal, pimenta e salsa. Uma malagueta para quem aprecia. As quantidades são a gosto. Normalmente  e em relação ao sal (que é o mais importante) deito uma mão-cheia num tacho grande.

Estando o Tacho neste preparo, das duas uma: ou refoga-se, introduzindo a meio da puxada o vinho branco (ou moscatel),e só depois o resto dos ingredientes, ou faz-se tudo em cru, às camadas alternadas.

Num caso ou no outro é a teoria das camadas que prevalece. Mas esta teoria é científica, como veremos.

Por exemplo, se preferimos a caldeirada com molho grosso e a batata meia desfeita, esta deve ser posta por baixo e começamos a cozinhar sem o peixe por uns 15 minutos. Se apreciamos a batata mais rija então colocamos tudo ao mesmo tempo: camada de batata, camada de peixe (os mais rijos em baixo), intercalando com tiras de pimento e tomate,  terminando sempre com duas sardinhas para dar gosto.

Peixes que entram sempre: pata roxa, safio de posta aberta, lulas.   Peixes de que mais gosto para juntar a esses: corvina e tamboril (com os fígados, postos por cima).

As lulas frescas por baixo, tamboril por cima e o resto mais ou menos "ao molho", terminando com as sardinhas e o fígado do tamboril.

Tempo de lume quando se faz tudo em cru: cerca de uma hora nos fogões das nossas casa, em fogo médio. Nunca mexer com colher, mas abanar de vez em quando o tacho. E provem para ver como está o sal e o picante, tendo em atenção que o odor forte influencia o paladar.

quarta-feira, fevereiro 17, 2016

Recordações de S. Petersburgo ( a propósito do jogo)



Estive a ver ontem o joguito e a sofrer quase  até este acabar (até aos 91 minutos, para ser mais preciso). E durante a jogatana lembrei-me da minha aventura de 2007 em S. Petersburgo.

Já aqui contei as histórias das minhas comidas nos restaurantes "Na Zdrovie" e "Canvas".

O que talvez não tenha dito foi quem estava nesse "Canvas" (restaurante do Hotel Renaissance) na mesa ao lado da minha.

Não sei o nome nem o que fazia na vida o pai de família que ali se sentou com os dois filhos adolescentes e a (deslumbrante)  mulher, que não seria a mãe das crianças pelo aspecto.

O que me impressionou na altura ( a mim que paguei 50 euros por 30 graminhas de beluga) foi que o dito cidadão russo mandou vir do mesmo beluga, mas num balde. À primeira vista parecia ser um balde de gelo. E a família alimentou-se fartamente desse balde, brandindo para o efeito colheres de sopa prateadas que envergonhavam soberanamente a discreta colherzinha de café com que eu colhia, ova a ova, o precioso caviar.

O olhar de piedade que me foi lançado da mesa ao lado doeu. E pensei " Estes bois tanto comem desta m**** que ainda lhes dá uma volta ao intestino. Uma ou duas! E era bem feito!!".

Como percebem foi um autêntico  latido de raposa a olhar para as uvas (vinha de enforcado) no alto das pérgulas... Estão verdes, não prestam...

A noção de perspectiva, de relatividade,  que aquele encontro fortuito me deu ficará para toda a minha vida. Eu,  que pensava estar no escalão superior do consumo, encontrei ali a "família alfa" do consumo pantagruélico... No que ao caviar diz respeito.

Mais tarde, já no Hermitage, observei outra peculiaridade daquele grande país.  O Hermitage é um dos maiores museus do mundo, com uma dimensão descomunal. Estará para o nosso MNAA como a baleia azul para um golfinho do Sado. Tem 365 salas e 20 km de extensão linear. Para ver tudo , tudo mesmo, 3 meses de visitas diárias são capazes de não ser suficientes.

Em cada uma das 365 salas existem guardas.  Nas salas com as peças mais importantes a segurança é forte. Mas noutras salas que já não estão assim tanto na moda, a segurança é feita por senhoras com mais de 50 anos, que passam pelas brasas durante as tardes, sentadas em cadeiras nos cantos.

Perdi-me naquele labirinto e fui dar a uma sala que depois vim a saber que seria a porta de entrada para as colecções orientais .

Estive sozinho  - quero dizer, estava lá uma senhora guarda mas apenas de corpo, o espírito estaria no país dos sonhos - com magníficas esculturas e pinturas bizantinas. Cheguei a mexer ( a tocar com os dedos) nalgumas peças!  Uma experiência incrível.

Nota: a fotografia representa um Díptico de marfim bizantino com cenas de circo, datado do século V a.c. É da Coleção Oriental do Hermitage.

terça-feira, fevereiro 16, 2016

Está hoje mais frio



Depois de dezenas de anos de frequência da Versalhes logo de manhãzinha,  o primeiro comentário que os meus "sócios" fazem assim que nos encontramos à porta é sempre sobre o tempo. E hoje o comentário comum era "Faz muito frio!"

É preciso dizer que com os meus sessenta anos sou um "puto" ao pé deles... O mais novo a seguir terá mais de 70.  E sentem mais frio com essas idades.

Eu posso confirmar isso com as minhas "santas". A única altura em que não refilam com o "despesismo" de que sou acusado a toda a hora é  quando me exigem para ligar o aquecimento central. Nestes meses de Inverno gasto uma bilha de 45 kg todos os 15 dias...

Na quinta da Beira Alta o "aquecimento central" são as lareiras. Trabalham a pinho. Do nosso. Sempre sai mais barato, embora a mão de obra e o asseio se compliquem.

O português tem por costume embirrar com o tempo que faz. Só lhe agrada o sol , desde que não seja  lavrador.  Chuva , vento e frio são assuntos que o incomodam.

Mas também na agricultura este assunto se está a tornar incómodo. O meu cunhado que tem a seu cargo a importantíssima tarefa de cuidar das nossas vinhas ( as poucas que restam e que só dão vinho para nosso consumo) anda sempre com a cabeça às voltas por causa do tempo que faz ou que deveria fazer.

Por exemplo, quando passou o ano novo disseram-me que "as terras estavam tão duras da falta de chuva que nem uma enxada lá entrava". Ontem já me foi referido que "os campos já não absorvem mais água, está tudo que parece um charco".

Parece aquela anedota do compadre alentejano, aflito com a seca e que se tinha dirigido à Direcção Regional da Agricultura com os papéis do pedido de subsídio. Quando lá chegou a chuva caía com tanta força que o funcionário da direcção o olhou com ar desconfiado. O compadre  pediu desculpa, saiu,  entrou no café Arcada e logo ali mudou o pedido para "indemnização pelas cheias".

O que é certo é que o tempo já não é o mesmo. O IPMA (Instituto Português do Mar e da Atmosfera) declara que foi este Janeiro de 2016 o mês mais quente dos últimos 50 anos (quem diria com o "briol" que está hoje!) e o mais chuvoso dos últimos 15 anos. Podem ler mais aqui:

http://www.ipma.pt/resources.www/docs/im.publicacoes/edicoes.online/20160205/aWMAJBRPxNvEhEfRMSdW/cli_20160101_20160131_pcl_mm_co_pt.pdf

Na Serra da Estrela os Invernos duravam mesmo 3 meses e eram rigorosos que se fartavam. Invernos rigorosos de antigamente, quando as estações do ano, em Portugal, eram coisa para se levar a sério. Fazia um frio de morrer, mais ainda lá para as serrarias da Beira Alta, onde a aspereza do clima é que marcava o ritmo do dia-a-dia. 

Os rebanhos ainda eram acossados pelos lobos e a água congelava nos poços e nas charcas dos lameiro.  Isso tudo ainda testemunhei eu. Há 40 anos atrás , não estou a falar de 400 anos no passado...

Faz-nos pensar o conselho dado pela Agência Portuguesa do Ambiente:  Importa, agora, face á consciência generalizada de que as Alterações Climáticas estão já em curso, e que nalgum grau os seus impactes são inevitáveis, dar uma crescente atenção à vertente da adaptação.

Ou seja: O mal já está feito, Só nos resta remediar. É uma pôrra...

segunda-feira, fevereiro 15, 2016

Aproveitar os esconsos



Quartos  em  mansarda com tectos inclinados, esta a primeira ideia que temos para definir a palavra "esconsos".

Depois veio a habitual generalização para "esconderijos", "cantos", "ângulos", e até para "actos dissimulados".

É muito portuguesa a vontade de aproveitar bem todos os cantinhos. Não deixar um cm de parede sem aproveitamento, ter sempre em atenção que por baixo das janelas pode caber um armário, no vão das escadas faz-se uma casa de banho, qualquer recuo de parede daria muito bem para mais um roupeiro. É até politicamente célebre o aproveitamento da varanda presidencial com "marquise" fechada.

Há quem diga que  esta tendência decorativa (?) pode estar enraizada no antigo hábito lusitano de "poupar".

A classe média - porque os pobres nunca puderam poupar, a não ser no que punham em cima da mesa - estava habituada aos "sacrifícios".

No "tempo da outra senhora" só o pensamento de que um filho ia seguir os estudos dava para anos de poupança obrigatória destas famílias. A vida de todos os dias era orientada por esse princípio: ter de poupar para qualquer coisinha que acontecesse, uma doença, um azar (como perder o emprego) , pagar os estudos ao rapaz, etc...

Não haviam sistemas de saúde, nem educação gratuita. Nem salubridade, nem tratamento de esgotos,  nem boa alimentação.

O magnífico documentário na RTP 2 sobre a Gripe Pneumónica em Portugal nos anos que se seguiram à 1ª Grande Guerra (de Fernando Rosas, episódio 13 de "história a história") explica bem o que foram esses anos e de que forma estava este pobríssimo país "preparado" para uma calamidade.

Reparem que "poupar para pagar uma casinha" é um fenómeno mais moderno, que terá começado com o Sr. J. Pimenta, lá para 1965.

J. Pimenta ,  falecido em Abril de 2015,  foi o precursor do "pato-bravo" em Portugal. O pequeno empresário meio aproveitador, que começou por baixo, geralmente como pedreiro e acabou como construtor civil.

 A seguir  veio o 25 Abril, aumentou o poder de compra, criaram-se as infraestruturas de apoio social, respirou a classe média, diminuiu o fosso entre ricos e pobres.

E depois? Bem, depois se calhar gastou-se muito e depressa. E lá chegou  a crise económica e financeira onde ainda estamos.

Embora os alcatruzes da nora não tenham andado ao contrário ( felizmente!) o que é certo é que a população se viu a braços com mais dificuldades e já sem o velho hábito de "poupar".

Porque quem sabia poupar e tinha poupado estava agora a dormir o sonho eterno. Enquanto que muitos dos mais novos não tinham esta vacina no sangue. Não precisavam de a levar, era como a varíola, que aparentemente está extinta desde 1978...

Reaprender a poupar pode ser nesta altura um traço de sobrevivência importante. Ainda mais com a lepra do desemprego a pairar por cima da cabeça dos mais novos.

Não me admiro por isso se tornar a ver o povo a fechar as marquises, nem que seja para lá porem uma cama para algum filho que voltou a entrar no agregado familiar.

Aproveitar os esconsos. Cada vez mais.

A arquitectura minimalista de interiores à la mode de Philippe Stark ou Shiro Kuramata é um luxo. Que podemos apenas vislumbrar nas revistas da especialidade, tal como as fotografias do novíssimo Bentley Bentayga...

A não ser para alguns. Aqueles que já esgotaram a fila de espera para o tal Bentley.

sexta-feira, fevereiro 12, 2016

Para Descansar a Vista...pensando em porcos.



Dia de chuva, dia de derby futebolístico em Lisboa, mas também o dia em que se soube que o nosso Ministro das Finanças teria dito:  "Governo está a preparar mais medidas, mas ...não devem ser precisas".

Estou algo incrédulo sobre esta frase, sobretudo depois de uma semana horrível para a Bolsa e para os Bancos ( em todo o mundo) onde o mais que me lembrei foi recomendar aos amigos que comprassem porcos (com vossa licença) para porem à varanda.

Porcos Malhados de Alcobaça porque, segundo parece, depois de crescidos dariam mais "cubicagem" do que os bísaros ou os alentejanos...
O povo sempre disse que o porco era o mealheiro do pobre. Pode ser que no futuro passe a ser o mealheiro do pobre, do remediado e do "outro" , do qual nem digo o nome com medo que o extingam de vez.

A malta começa (outra vez) a estar com alguma "miúfa" do que para aí virá.

Poema adequado a porcos e a tempos de crise?  Estamos com medo? Terá de ser de um iconoclasta.

Aqui vai o grande O'Neill:

O Poema Pouco Original do Medo

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
       (assim assim)
escriturários
       (muitos)
intelectuais
       (o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos

Alexandre O'Neill, in 'Abandono Viciado' 

quinta-feira, fevereiro 11, 2016

Catedrais de Portugal

Recebemos hoje os primeiros livros "Catedrais de Portugal", do Arqº António Saraiva, com prefácio do Sr. Bispo da Guarda. Vão agora para a nossa logística, para serem numerados e neles se colocarem os selos.

Na capa (só podia!) uma imagem magnífica do órgão da milenar catedral de Braga! A mais antiga Catedral Portuguesa em funções. O venerando edifício paleo-cristão de Idanha-a-Velha (Castelo Branco) , que precedeu a construção da Sé de Braga,  infelizmente está em ruínas.

As nossas 27 Catedrais são milagres da devoção medieval revelados em Obras de Arte, pilares do céu definidores da paisagem urbana, marcos de memória e de agregação das nossas gentes, de Norte a Sul do País, do Litoral ao Interior, incluindo as Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores. 

Para concretizar esta presença tangível do sagrado na terra empenharam-se as mais bem preparadas mentes de então, coordenando os trabalhos das respetivas “fabricas” que tinham património e rendimentos próprios, em grande parte proveniente de doações testamentárias. Foi uma grande aventura a sua construção, prolongando-se ao longo de séculos, criando escolas de mesteres e dando trabalho a muito milhares de portugueses.
Era um projeto onde todos colaboravam, desde o pobre, com o trabalho, até ao nobre com as suas doações.

As Catedrais Portuguesas, todas e cada uma elas, «Têm um inestimável valor religioso, histórico, artístico, cultural, simbólico e patrimonial», como muito bem foi referido no Acordo que reuniu o Mistério da Cultura e a Conferência Episcopal Portuguesa no projeto ímpar de recuperação e desenvolvimento — a Rota das Catedrais — criado, não apenas para acudir a situações de mais evidente degradação, mas sobretudo para alcançar a capacitação plena das Catedrais, através de uma qualificada intervenção de recuperação e conservação.

Desta forma, não seria possível aos CTT Correios de Portugal, cuja vertente filatélica tem a obrigação de constituir a «Memória Histórica da Nação», nas palavras do Professor Oliveira Marques, ignorar este grande projecto, profundamente nacional pela abrangência, pela larga partilha de saberes e pela recuperação de tantos aspectos culturais de invulgar importância.

Por todos estes motivos, fizemos três emissões de selos postais, em 2012, 2013 e 2014, retratando as Catedrais do nosso país, e editamos agora um livro sobre esta temática, tão grandiosa pelo significado como pela imponente presença física destas edificações nas nossas cidades.

Agradecemos a todos aqueles que nos ajudaram a concretizar esta aventura editorial, aos designers e impressores, às Dioceses que colaboraram e disponibilizaram conteúdos, mas sobretudo ao autor, Arquiteto António Saraiva, pela robustez dos seus conhecimentos e pela visão muito pessoal que nos transmitiu sobre este assunto e a Sua Excelência Reverendíssima o Sr. Bispo da Guarda, que nos deu a honra de prefaciar esta obra.

Custa 37€ e estará numa loja de Correios perto de si a partir de 24 deste mês. Contem 26 selos de correio nunca usados.

quarta-feira, fevereiro 10, 2016

A Quaresma e a ajuda que podemos dar aos outros



 Começa hoje o período de 40 dias que antecede a Páscoa e que se costuma destacar por apelos ao jejum, partilha de bens e penitência.

Falo obviamente para quem é católico. Mas mesmo para quem não pratica ou sequer segue esta religião existem normas de vida em sociedade que são intrinsecamente respeitáveis, cruzando as diversas esferas  das classes sociais e as diversas formas de estar no mundo. Entre elas o apoio a quem mais precisa.

Nesse sentido dou aqui conhecimento da mensagem do Sr. Arcebispo de Braga,  solicitando que as comunidades católicas  façam da Quaresma um tempo de partilha e compromisso com a Igreja e com o bem da sociedade. E declarando ainda  que deveríamos destinar a renúncia quaresmal  (o dinheiro que gastaríamos em consumos supérfluos nestes dias)  ao Fundo Partilhar com Esperança.
Este fundo de acção social da Diocese de Braga tem sido responsável por uma ajuda notável aos casos mais graves de pobreza que afligem a região, complementando aquilo que as ajudas de estado não podem já fazer ou não são suficientes para fazer. Nomeadamente o apoio a:
- Novos desempregados;
- Situações de pobreza escondida;
- Situações de doença crónica ou prolongada;
- Famílias monoparentais.
Gosto muito do Sr. D. Jorge Ortiga. Católicos e gente boa de outras crenças (ou não crentes) reconhecem nele a cultura e a sabedoria, a grande simplicidade, o respeito inabalável pelos seus princípios e uma maneira muito "chã" de chamar os verdadeiros nomes às coisas. Mesmo quando são aquelas coisas que os poderes constituídos não gostam muito de ouvir. 
No auge da crise dos refugiados foi dele uma das primeiras declarações a favor da recepção  em Portugal : " A Igreja está preparada para os receber".
Um grande Arcebispo, para uma grande cátedra.

segunda-feira, fevereiro 08, 2016

Brincar ao Carnaval?


Nunca gostei de carnavaladas.

E reparem que sou do tempo em que o Sr. Teodoro "das Malas" convidava a Claudia Cardinale e o Mauríce Chevalier para abrilhantarem o corso do Estoril... Tempos em que este Carnaval do Estoril competia , na Europa, com o de Veneza e com o de Nice. O Carnaval do Rio de Janeiro já nessa altura pertencia a outra liga.

Os meus pais insistiam para que me mascarasse, porque era "moda", toda a gente o fazia. E eu irritava-me, amuava e devia passar os mais tristes 3 dias do ano armado em "campino" ou em "toureiro" de trazer por casa...

Isto durou até ao meu grito pessoal de "Independência ou Morte", que não foi dado nas margens do Ipiranga como o do D. Pedro, mas ficou famoso à beira da Praia da Poça. Teria eu uns 12 para 13anos.

Mascarar-me nunca mais. Se insistissem, eu trataria de dar cabo da fantasia nem que fosse rebolando com ela pelo chão. E como as ditas cujas se alugavam, acho que consegui que a entidade paternal visse a razoabilidade do pedido do "Je". Poupava dinheiro ao erário familiar e deixava de passar uns dias desgraçado.

O meu filho (e senhorio) penso que se mascarou algumas vezes a pedido da escola onde andava, mas nunca com o meu entusiasmo e dedicação. A Natália é que tratava disso. E como a criatura saiu a mim nalgumas matérias ( excepto na simpatia clubística) cedo essas bernardas também acabaram.

Claro que na adolescência tardia que eu tive, quando já ganhava o meu ordenado na faculdade e ainda vivia com os meus pais, essas noites de Carnaval eram apenas mais um pretexto para a perseguição às miúdas. Nessa quadra  a cama parecia uma promessa mais longe que perto, que seria utilizada lá para a Quarta Feira de Cinzas.

Houve um Carnaval em que alugámos uma casa na Costa da Caparica e - juro - nem vi a cor dos lençóis dessas camas nas duas noites que por lá passámos. Perguntarão os mais atrevidos "Se não viu a cor dos lençóis como resolveu o "resto do assunto". Ou assuntos?"

A resposta é que os "assuntos" foram-se resolvendo noutras paisagens. Com  destaque para os tapetes do chão. Sem esquecer a banca da cozinha, pois já nesse tempo me entretia muito com os tachos...

Já mais tarde, enquanto os CTT trabalhavam na Terça Feira de Entrudo  - durante anos este feriado foi trocado no nosso AE pela véspera de Natal - criámos um grupinho que nesse dia ia sempre almoçar uma feijoada de cabeça de porco. Na Casal Ribeiro eram famosas as cenas da Manuela atrás do Sr. Novo, (o nosso motorista) a tentar maquilhá-lo ,e ele a fugir aos gritos "Isso não D. Manuela! Isso não!". E a Isabel Galrito normalmente disfarçava-se de homem, metia uma cenoura  bem à vista na braguilha e ia visitar as salas dos outros colegas.

Ou seja, mesmo que nunca fosse fanático do Carnaval, a pose desses dias mais endiabrados não deixava de influenciar o meu comportamento, sobretudo se a envolvente o merecia.

E hoje? Sopas e descanso?

Está mais para aí do que para outro lado. A única fuga ao comportamento habitual é que mantenho em minha casa a tradição da feijoada ( com feijoca grossa da Serra da Estrela) para o almoço da Terça Feira Gorda.

Quanto ao resto? Nem me dá para ver na Globo o desfile no Sambódromo...

É a idade.

sexta-feira, fevereiro 05, 2016

Para Descansar a Vista



A poesia das sextas-feiras tem hoje que se bater com os aniversários de Cristiano Ronaldo, Neymar e Carlos Tevez...

Para já não falar do "nosso" Francisco Galamba que, tanto quanto sei, não joga à bola profissionalmente (pior para ele), mas sempre vai tomando conta dos nossos desenhos de selos e de artes finais de livros...

Poesia em redor da bola só podia ser um poema de Vinicius de Moraes sobre o imortal Mané Garincha -  "o anjo das pernas tortas".

Manoel Francisco dos Santos,  nasceu em Pau Grande ( e Olé!) e tinha as pernas deformadas. A perna direita tinha mais 6 cm do que a outra, por isso arqueava. Quando nasceu tinham dúvidas que pudesse andar  mas depois não só andou como correu e driblou.
É ainda hoje considerado o maior ponta direita que existiu e um dos melhores jogadores de futebol do mundo.

Pessoa humilde e com dificuldade para memorizar tácticas e nomes, chamava a todos os defesas encarregues de o marcar "João".

Na final do mundial da Suécia (1958) em que o Brasil ganhou 5 a 2 com um festival da dupla Garrincha-Pelé, Mané chamava "João" ao atleta sueco Börgensson  a toda a hora e este mais tarde escreveu que tinha ficado chateado porque  pensava que o estavam a mandar para algum sítio feio...

E aqui vai poema:

O ANJO DAS PERNAS TORTAS

A um passe de Didi, Garrincha avança
Colado o couro aos pés, o olhar atento
Dribla um, dribla dois, depois descansa
Como a medir o lance do momento.

Vem-lhe o pressentimento; ele se lança
Mais rápido que o próprio pensamento
Dribla mais um, mais dois; a bola trança
Feliz, entre seus pés — um pé de vento!


Num só transporte, a multidão contrita
Em ato de morte se levanta e grita
Seu uníssono canto de esperança.

Garrincha, o anjo, escuta e atende: — Goooool!
É pura imagem: um G que chuta um o
Dentro da meta, um l. É pura dança!

Vinicius de Moraes

quinta-feira, fevereiro 04, 2016

Sobre os enchidos, a carne e a OMS



Ainda estou um bocado ressacado de um monumental cozido à portuguesa que "entranhámos" em
casa de um bom Amigo, pelo que não sei se terei distanciamento e frieza suficientes para me pronunciar sobre assunto tão sério como a da questão das carnes vermelhas,  dos fumados, e sua relação com a saúde pública.
Mas é sabido que depois da questão do botulismo nas alheiras de certo produtor ( e que ia levando ao descalabro total da região produtora) faz falta uma reflexão sobre esta matéria que tenha em atenção as variáveis todas.

Sobre as carnes, processadas ou não, o que diz o relatório oficial é o seguinte:

O consumo de carne vermelha, como vaca ou porco, foi considerado como “provavelmente carcinogénico para humanos” e o consumo de carne processada, como salsichas, fumados ou enlatados, como “carcinogénico para humanos”, concluiu o relatório da agência internacional da Organização Mundial de Saúde que se dedica ao estudo do cancro (International Agency for Research on Cancer, IARC).

Vamos pôr o assunto em perspectiva:
- Segundo os mesmos relatórios oficiais, o consumo de carnes processadas pode ser responsável por cerca de 34 000 mortes por ano no mundo.
- Mortes causadas anualmente por acidentes de viação são 1,5 milhões , o tabaco é responsável por 1 milhão de mortes, o consumo de álcool explica 600 000 mortes e a  poluição fará mais de 200 000 mortes, também anuais. A gasolina com chumbo matava mais de 150 000 ao ano.

Não estou a ver os terráqueos a deixarem de passear ao ar livre, a deixarem o "carocha" em casa ou a cortarem totalmente com a "pinga", nas suas formas de vinho, cerveja, vodka, etc... Apesar do risco medido para próprios e terceiros ser muito maior nessas "actividades" do que com o consumo das carnes vermelhas ou processadas...

Uma coisa é a saúde pública, outra será a saúde privada, de cada um de nós. A poluição, o fumo do tabaco, a gasolina com chumbo* ( até 1986 no mundo civilizado. Mas ainda se utiliza no "outro" mundo) , são assassinos reconhecidos de terceiros, para não dizer de multidões. O álcool é-o potencialmente, quando por exemplo um condutor se mete num carro bem "aviado". 

Quem come um chouriço de vez em quando, numa feijoada,  ameaça  os outros? Só se for pela possível escapatória de gases pela porta dos fundos... Mesmo assim não morrerão. Podem é ter de basar dali, algo incomodados.

E quanto aos riscos reais para os próprios consumidores? Fizeram-se contas às probabilidades de risco de cancro colorretal com o consumo de carnes processadas.  Essas contas, feitas por especialistas no Reino Unido,  são assim:
Entre as pessoas que comem pouca ou nenhuma carne há 56 pessoas em cada mil no Reino Unido que podem desenvolver cancro colorretal.  Entre as pessoas que comem muita carne processada haverá 66 pessoas em cada mil que podem desenvolver este tipo de cancro.

Parece que o busílis da questão estará na quantidade e na frequência destes consumos. Um marmanjo que se alimente de enchidos de manhã, à tarde e à noite tem mais probabilidades de adoecer com estas maleitas. Mas também se está a pôr a jeito, com essa alarvice. Um cidadão que coma de vez em quando o toucinho no cozido ou a farinheira nas favas é tão provável que morra disso como da queda de um frigorífico em cima da cabeça ao passar por baixo de um prédio em mudanças.

 Atribuíam ao sábio Claude Lévy-Strauss , mestre dos antropólogos da Sorbonne, esta frase:  "Se um gajo (ele escrevia "mec" ) não quer ser comido pelos antropófagos, não convém que veraneie na Papua-Nova Guiné.  Mas se for para aí é mais provável que morra de insolação. Claro que ainda pode ser devorado depois de morto. Para isso é que lá estão as minhocas...".

Moral da história:  Morrer, morremos todos. Alguns cheios de saúde, outros não...

*Recordo aos leitores a questão nefanda da gasolina com chumbo , de como foi "legal" durante mais de 40 anos, matando cerca de 150 000 pessoas por ano ,  até que a lei a proibiu em 1986, devido aos esforços do grande ambientalista e cientista Clair Patterson.

Podem ler aqui os detalhes dessa cabala contra a saúde pública que foi montada pela Troika (salvo seja) GM, Du Pont e Standard Oil com o objectivo de recolher lucros chorudos à conta de uma maior eficácia da combustão nos motores da época:

http://www.thenation.com/article/secret-history-lead/


quarta-feira, fevereiro 03, 2016

As vacas gordas e as outras...

Há semanas em que tudo nos parece aparecer ao mesmo tempo, por vezes as coisas boas em catadupa, outras vezes as menos boas...

Se me permitissem escolher acho que preferia uma distribuição mais equilibrada da chuva e do solzinho... mas não temos essa competência.

Nesta semana tive - por enquanto - duas refeições extraordinárias. Uma no Beira Mar, às voltas com um tacho de Arroz de Lampreia excelente;  e depois no Jockey, preparando a festa do Dia Nacional da Gastronomia na presença de um impecável "Jarret de Veau" no forno.

No Beira Mar sobressaiu ainda o "bucho" caseiro da Raia, a Morcela da mesma proveniência, e os admiráveis percebes e santolas ali mesmo apanhados no Cabo da Roca. Cortesia da Fátima Moura e da Dª Lurdes.

No Jockey para além do joelho de  vitela assada ainda tivemos direito a favas guisadas com superior competência, e houve no final uma  "rave" de sobremesas (quem lá estava percebia da poda, era a Drª Olga Cavaleiro da Federação das Confrarias Gastronómicas). Tudo aplaudido.

Mas tive também algumas decepções, começando por um tinto Reserva de 2011 da casta Sousão, da Real Companhia Velha. Esperava muito mais do que aquilo que revelou no copo: falta de alma, corpo discreto... Que pena... E por quase 40 euros a garrafa nas lojas? Imaginem nos restaurantes...

Nesse capítulo dos líquidos salvaram-se duas boas novidades: o espumante "Único" da Murganheira e o tinto do Douro "Duvalley" , ambos de 2011.  Magníficos!!

Falámos de projectos novos no âmbito da edição gastronómica e da divulgação.  Com a Fátima Moura, em Cascais. E, em Lisboa,  com a Drª Olga e o seu colega Dr. Couceiro (da confraria do Queijo da Serra), juntamente com o Engº João Pereira da "TerraProjectos", que fez connosco a emissão de selos sobre a Fruta Portuguesa Certificada, com sucesso absoluto.

A AHRESP foi madrinha e os CTT o padrinho destas confabulações. E mais haverá para dizer proximamente, mas temos de ir preparando o caminho.

Para continuar bem a semana há hoje um "petisco" feito por queridos amigos: uns coelhos bravos com míscaros da Guarda...estou já salivando.

Penso que compreendem como se torna difícil comparar semanas destas - em que tudo parece ir acontecer ao mesmo tempo - com outras onde nada há a assinalar deste ponto de vista gastronómico mais especial.

Depois do Carnaval - que para mim gastronomicamente falando chegou mais cedo - virá a Quaresma.

Após a desbunda carnavalesca, o festival romano da “carne” em todos os seus aspetos rabelaisianos mas também sexuais, inicia-se com a Quaresma um período de mais calma para o estômago, fígado e outras vísceras.

Com estas práticas de alguma prudência pretende-se dar descanso ao corpo e centralizar o espírito.

Mesmo fora de considerações morais ou religiosas, a sua observação para crentes e não-crentes tem a vantagem de preparar o saco das tripas para mais e melhores (devemos ser otimistas) aventuras à mesa (e fora dela).

E depois da Quaresma regressará a Páscoa, no esplendor dos primeiros borregos e queijos da serra do ano.

Vacas gordas e as magras. É assim a vida.

segunda-feira, fevereiro 01, 2016

Sem tino



Falo de "tino" (juízo, prudência) . Não escrevi "Tino", diminutivo de Vitorino.

Nome que pertence  ao candidato presidencial da freguesia de Rans (não confundir com rãs). Mas também a Vitorino de Almeida e a Vitorino Nemésio, a Vitorino Magalhães Godinho e a Vitorino Froes, o grande cavaleiro tauromáquico de Alfeizerão.

Há "Tinos" que foram Vitorinos, mas também há cada vez mais (infelizmente) muita gente "sem tino".  Gente com pouco ou nenhum juízo e que estende a sua influência aos meios de comunicação social.

E nem pensem que se trata de um fenómeno puramente nacional!! Nada disso. Estão as nossas CM-TV e TVI Reality muitíssimo bem acompanhadas por canais estrangeiros nesta tarefa de deitar poeira para os olhos do povo.

Este Domingo embarquei numa orgia de zapping enquanto vigiava os fornos, e  dei por mim a ver e ouvir "coisas" que não lembrariam ao diabo (com vossa licença).

 Começo pelo canal História, onde gente circunspecta quer  fazer-nos acreditar que o calendário Maia fora elaborado com a intenção de prever a criação do Great Hadron Collider (o maior acelador de partículas do mundo, explorado pela agência nuclear europeia CERN), seguido de mais um episódio no mesmo canal sobre a recente interpretação "científica" do Jardim do Éden como um laboratório genético onde se tentara criar um híbrido de primata e de réptil ( a serpente bíblica...).

Ainda mal refeito dei por mim a ver um episódio no Discovery com imagens do que foi considerado pelos "peritos" presentes em estúdio uma "sereia". Melhor dito, um "sereio" , dado que a face da criatura era mais para o macho. Esta "sereia" foi vista e filmada em vários lugares. Desde o México e o Brasil até a Moçambique e a Israel. Há até um autarca israelita que oferece 1 milhão de USD a qualquer turista que vá lá para as suas ilhas e descubra "provas irrefutáveis" da existências das sereias que foram filmadas...

Os "cientistas" acham que se tratará de uma nova espécie de homo sapiens, o "homo aquaticus". São mais visíveis agora devido às experiências da marinha norte-americana utilizando sonares cada vez mais potentes...

Não me entendam mal, eu sou adepto de um bom filme de ficção científica ou de terror. Mas apresentar às pessoas essas conclusões dentro do enquadramento de programas pretensamente científicos e pedagógicos? Homessa...

O problema é que 70% ou 80% dos telespectadores gostam daquilo, a ter fé nas sondagens. "Aquilo" sendo um cabaz de telenovelas, reality shows, incêndios em directo, mais as crónicas dos assassinatos e dos roubos da noite passada...

Os restantes 20% contam pouco para as guerras das audiências. Nem devem existir.  A RTP 2 assume-se como o último bastião de quem se senta para ver TV fora do cabo com alguma qualidade. Nem sei por quanto tempo aguentará aquele tipo de programação...

A NetFlix e os outros fornecedores de programas de TV em streaming directo da Internet - sobretudo filmes, séries e ainda documentários - podem ter o futuro assegurado cá no burgo se o comportamento dos canais ditos generalistas e populares disponíveis continuar ao mesmo nível?

Bem, sim, para os tais 20% de "esquisitóides" onde me incluo. Cada vez mais o "entretenimento em minha casa" passa por ser cada um de nós ( eu e o meu senhorio) a escolher o que queremos ver, quando queremos ver.

Agora, prefiro entreter-me com  o Godzilla (mesmo o de 2014) a ver no Discovery mais uma série de episódios sobre o Carchoron Megalodon, um "peixito" de 20 metros e  50 toneladas que terá existido há 20 milhões de anos, mas que segundo parece ainda veraneia por alguns dos nossos mares de hoje, possivelmente atraído pelo canto e pela  presença das sereias...