sexta-feira, fevereiro 26, 2016

Para Descansar a Vista debaixo de chuva



O tempo hoje está de feição para um bom livro ao pé da lareira.  Recordo com saudade o meu amigo  Rainha e como ele, um transmontano de Carrazeda,  se referia à sua lareira do Estoril.

Era mais ou menos assim: tenho uma lareira em casa, coisa que já não me acontecia desde que saí da aldeia! Tenho saudades do  frio cá fora e do conforto da lareira. Temos que inaugurar a lareira! E claro que terá de ser num dia de temporalMas aqui no Estoril já ando há dois Invernos à espera...Mas que pôrra!

Vim à procura de poetas mais modernos e encontrei uma "rapariga" do meu tempo: Ana Luisa Amaral, nascida em 1956,  professora associada no departamento de estudos anglo-americanos da Faculdade de Letras do Porto.

E escreve admiravelmente:

A Mais Perfeita Imagem

Se eu varresse todas as manhãs as pequenas
agulhas que caem deste arbusto e o chão
que lhes dá casa, teria uma metáfora perfeita para
o que me levou a desamar-te.

Se todas as manhãs
lavasse esta janela e, no fulgor do vidro, além
do meu reflexo, sentisse distrair-se a transparência
que o nada representa, veria que o arbusto não passa
de um inferno, ausente o decassílabo da chama.

Se todas as manhãs olhasse a teia a enfeitar-lhe os
ramos, também a entendia, a essa imperfeição
de Maio a Agosto que lhe corrompe os fios e lhes
desarma geometria. E a cor.

Mesmo se agora visse
este poema em tom de conclusão, notaria como o seu
verso cresce, sem rimar, numa prosódia incerta e
descontínua que foge ao meu comum.

O devagar do
vento, a erosão. Veria que a saudade pertence a outra
teia de outro tempo, não é daqui, mas se emprestou
a um neurônio meu, unia memória que teima ainda
uma qualquer beleza: o fogo de uma pira funerária.
A mais perfeita imagem da arte. E do adeus.

Ana Luísa Amaral, in 'A Arte de Ser Tigre' 


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