O tempo hoje está de feição para um bom livro ao pé da lareira. Recordo com saudade o meu amigo Rainha e como ele, um transmontano de Carrazeda, se referia à sua lareira do Estoril.
Era mais ou menos assim: tenho uma lareira em casa, coisa que já não me acontecia desde que saí da aldeia! Tenho saudades do frio cá fora e do conforto da lareira. Temos que inaugurar a lareira! E claro que terá de ser num dia de temporal! Mas aqui no Estoril já ando há dois Invernos à espera...Mas que pôrra!
Vim à procura de poetas mais modernos e encontrei uma "rapariga" do meu tempo: Ana Luisa Amaral, nascida em 1956, professora associada no departamento de estudos anglo- americanos da Faculdade de Letras do Porto.
E escreve admiravelmente:
A Mais Perfeita
Imagem
Se eu varresse
todas as manhãs as pequenas
agulhas que caem deste arbusto e o chão
que lhes dá casa, teria uma metáfora perfeita para
o que me levou a desamar-te.
agulhas que caem deste arbusto e o chão
que lhes dá casa, teria uma metáfora perfeita para
o que me levou a desamar-te.
Se todas as
manhãs
lavasse esta janela e, no fulgor do vidro, além
do meu reflexo, sentisse distrair-se a transparência
que o nada representa, veria que o arbusto não passa
de um inferno, ausente o decassílabo da chama.
lavasse esta janela e, no fulgor do vidro, além
do meu reflexo, sentisse distrair-se a transparência
que o nada representa, veria que o arbusto não passa
de um inferno, ausente o decassílabo da chama.
Se todas as
manhãs olhasse a teia a enfeitar-lhe os
ramos, também a entendia, a essa imperfeição
de Maio a Agosto que lhe corrompe os fios e lhes
desarma geometria. E a cor.
ramos, também a entendia, a essa imperfeição
de Maio a Agosto que lhe corrompe os fios e lhes
desarma geometria. E a cor.
Mesmo se agora
visse
este poema em tom de conclusão, notaria como o seu
verso cresce, sem rimar, numa prosódia incerta e
descontínua que foge ao meu comum.
este poema em tom de conclusão, notaria como o seu
verso cresce, sem rimar, numa prosódia incerta e
descontínua que foge ao meu comum.
O devagar do
vento, a erosão. Veria que a saudade pertence a outra
teia de outro tempo, não é daqui, mas se emprestou
a um neurônio meu, unia memória que teima ainda
uma qualquer beleza: o fogo de uma pira funerária.
A mais perfeita imagem da arte. E do adeus.
Ana Luísa Amaral, in 'A Arte de Ser Tigre'
vento, a erosão. Veria que a saudade pertence a outra
teia de outro tempo, não é daqui, mas se emprestou
a um neurônio meu, unia memória que teima ainda
uma qualquer beleza: o fogo de uma pira funerária.
A mais perfeita imagem da arte. E do adeus.
Ana Luísa Amaral, in 'A Arte de Ser Tigre'
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