sexta-feira, junho 27, 2014

Para Descansar a Vista

Ainda com os olhos cheios de Brasil (por entre as lágrimas ) é normal que o poema de hoje seja desse lado do Mar.

 Do mar moreno, como lhe chama o Prof. Adriano Moreira, o Atlântico que vai  de Sagres até ao Rio de Janeiro.

A revista literária Bula quis eleger os 10 maiores poemas brasileiros de todos os tempos. Eleitos por 50 convidados (escritores, poetas, jornalistas e críticos) .  Mas acabou por ter de escolher 24 poemas, aqueles que tinham todos tido mais de 3 citações dos votantes. A lista aqui fica:
A Máquina do Mundo”, “Procura da Poesia”, “Áporo” e “Flor e a Náusea”, de Carlos Drummond de Andrade; “O Cão Sem Plumas”, “Tecendo a Manhã” e “Uma Faca Só Lâmina”, de João Cabral de Melo Neto; “Invenção de Orfeu”, de Jorge de Lima; “O Inferno de Wall Street”, de Sousândrade; “Marília de Dirceu”, de Tomás Antônio Gonzaga; “Cobra Norato”, de Raul Bopp; “O Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles; “Vozes d’África”, de Castro Alves; “Vou-me Embora pra Pasárgada” e “O Cacto”, de Manuel Bandeira; “Poema Sujo” e “Uma Fotografia Aérea”, de Ferreira Gullar; “Via Láctea” e “De Volta do Baile”, de Olavo Bilac; “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias; “As Cismas do Destino” e “Versos Íntimos”, de Augusto dos Anjos; “As Pombas”, de Raimundo Correia; “Soneto da Fi­delidade”, de Vinícius de Moraes.

De entre esses 24 escolho "O Cão sem Plumas" do grande João Cabral de Melo Neto, poeta e diplomata (também ele). Nasceu em Pernambuco em 1920, faleceu no Rio em 1999.

O Cão Sem Plumas

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.


O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.


Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.


Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.

Sabia da lama
como de uma mucosa.

 
Devia saber dos povos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.


Jamais se abre em peixes.

João Cabral de Melo Neto

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