sexta-feira, março 21, 2014

Para Descansar a Vista

Neste Dia Mundial da Poesia (UNESCO) hesito entre o óbvio "hululante" - Camões e Pessoa - depois da decisão saudável de me manter dentro dos confins desse Oceano que é a Língua Portuguesa...

Não vos dou Camões nem Pessoa, achei melhor usar a abrangência da nossa língua para fazer um pequeno percurso sobre vários poetas que escrevem português em locais muito diferentes.


Se houvesse degraus na terra...
 
Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

 Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

 Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.

 Herberto Helder (Funchal)

 Insensatez

Ah, insensatez que você fez
Coração mais sem cuidado
Fez chorar de dor o seu amor
Um amor tão delicado
Ah, por que você foi tão fraco assim
Assim tão desalmado
Ah, meu coração, quem nunca amou
Não merece ser amado

Vai, meu coração, ouve a razão
Usa só sinceridade
Quem semeia vento, diz a razão
Colhe sempre tempestade
Vai, meu coração, pede perdão
Perdão apaixonado
Vai, porque quem não pede perdão
Não é nunca perdoado

Vinicius de Moraes (Rio de Janeiro)

Testamento

À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...

E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...

Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...
E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.

Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...

Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,
Vás por essa noite fora...
Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...

Alda Lara (Benguela)


2 comentários:

Américo Oliveira disse...

Permitam-me acrescentar a esta lista um poeta que alguns já consideraram o "Camões de Cabo Verde":

PARTINDO

Triste, por te deixar, de manhãzinha
Desci ao porto. E logo, asas ao vento,
Fomos singrando, sob um céu cinzento,
Como, num ar de chuva, uma andorinha.

Olhos na Ilha eu vi, amiga minha,
A pouco e pouco, num decrescimento,
Fugir o Lar, perder-se num momento
A montanha em que o nosso amor se aninha.

Nada pergunto; nem quero saber
Aonde vou: se voltarei sequer;
Quanto, em ventura ou lágrimas, me espera

Apenas sei, ó minha Primavera,
Que tu me ficas lagrimosa e triste.
E que sem ti a Luz já não existe.

Eugénio Tavares (Cidade da Praia)

Américo Oliveira disse...

Já agora, é só um saltinho até Moçambique:

AUTO-RETRATO

De português tenho a nostalgia lírica
de coisas passadistas, de uma infância
amortalhada entre loucos girassóis e folguedos;
a ardência árabe dos olhos, o pendor
para os extremos: da lágrima pronta
à incandescência súbita das palavras contundentes
do riso claro à angústia mais amarga.

De português, a costela macabra, a alma
enquistada de fado, resistente a todas
as ablações de ordem cultural e o saber
que o tinto, melhor que o branco,
há-de atestar a taça na ortodoxia
de certas vitualhas de consistência e paladar telúrico.

De português, o olhinho malandro, concupiscente
e plurirracional, lesto na mirada ao seio
entrevisto, à nesga da perna, à fímbria da nádega;
a resposta certeira e lépida a dardejar nos lábios,
o prazer saboroso e enternecido da má-língua.

De suiço tenho, herdados de meu bisavô,
um relógio de bolso antigo e um vago, estranho nome.

Rui Knopfli (Lourenço Marques)