Ao encarar esta vida política lamacenta uma das coisas que salta à vista é a pouca memória de alguns dos candidatos... Parece necessário recordar a Memória, aquela faculdade que mais devia ser nossa Mestra e mentora... Aqui vai poema (belíssimo!) a ela dedicada.
Memória Consentida
Neste lugar sem tempo nem memória,
nesta luz absoluta ou absurda,
ou só escuridão total, relances há
em que creio, ou se me afigura,
ter tido, alguma vez, passado
com biografia, onde se misturam
datas, nomes, caras, paisagens
que, de tão rápidas, me deixam
apenas a lembrança agoniada
de não mais poder lembrá-las.
Sobra, por vezes, um estilhaço
ou fragmento, como o latido
de um cão na tarde dolente
e comprida de uma remota infância.
Ou o indistinto murmúrio de vozes
junto de um rio que, como as vozes,
não existe já quando para ele
volvo, surpreso, o olhar cansado.
Insidiosas, rangem tábuas no soalho,
ou é o sussurro brando do vento
no zinco ondulado, na fronde umbrosa
dos eucaliptos de perfil no horizonte,
com o mar ao fundo.
Que soalho,
de que casa, que vento em que paragens,
onde o mar ao longe que, entrevistos,
os não vejo já ou, sequer, recordo
na brevidade do instante cruel?
De que sonho, ou vida, ou espaço de outrem
provêm tais sombras melancólicas,
ferindo de indecifráveis avisos
este lugar em que, não sendo consentido
o coração, se não consentem tempo e memória?
Pausa ou pena, a seu oculto propósito há-de
sempre opor-se, lenta, a inexorável asfixia
desta luz absurda, ou só escuridão total.
Rui Knopfli, in "O Corpo de Atena"
Rui Knopfli: Rui Manuel Correia Knopfli (1932 - 1997) Nasceu em Inhambane, Moçambique, a 10 de Agosto de 1932 e fez os seus estudos na África do Sul.
Poeta, jornalista, critico literário e de cinema, iniciou a carreira na então cidade de Lourenço Marques, actual Maputo.
Deixou Moçambique em 1975, é de nacionalidade portuguesa com alma assumidamente africana.
Tem colaboração dispersa por vários jornais e revistas e publicou vários livros.
Desempenhou funções de adido cultural na Embaixada Portuguesa em Londres.
Faleceu em Lisboa em 1997.
Obras Principais: O País dos Outros, 1959; Reino Submarino, 1962; Máquina de Areia, 1964; Mangas Verdes com Sal, 1969; A Ilha de Próspero, 1972; O Escriba Acocorado, 1978; Memória Consentida: 20 Anos de Poesia 1959-1979, 1982; O Corpo de Atena, 1984; O monhé das cobras (Poesia), 1997 ; Obra Poética, 2003.
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