A Receita gastronómica ajuda a fazer. A Receita equilibra as quantidades e auxilia na composição das matérias-primas. A boa Receita até deve dar indicações sobre os tempos de cocção (tremendamente importantes por exemplo na definição dos diversos "pontos de açucar" na doçaria conventual portuguesa).
A Receita ou melhor, o Livro de Receitas, foi e continua a ser uma ajuda notável para quem começa a vida independente, seja homem ou mulher. Salvé o famoso Pantagruel de Berta Rosa Limpo e o Larousse Gastronomique!
Não resisto a contar uma história verdadeira: uma amiga minha, casando-se cedo e sem que a família a tivesse devidamente preparado para as "lides domésticas" , confidenciou-me que a primeira vez que tentou fazer para o marido um "bife com ovo a cavalo" tinha posto na frigideira o ovo crú em cima do bife (também ele crú) e esperado pelo resultado...
O Receituário correcto deve cumprir todas estas funções: Recolha de boas práticas, manual de normas, e até elucidário etnográfico, ilustrando as ocasiões em que certos pratos eram comidos e porquê. Obviamente que a sua principal função tem sido servir de guia para quem se aventura à frente dos fogões. Mas hoje em dia valorizamos sobretudo a sua componente de memória histórica, preservando as formas ancestrais de fazer que se tornam, com o passar dos tempos, partes integrantes da Cultura popular.
Saudações no Olimpo e muita saudade para o Amigo Alfredo Saramago, grande cultor desta forma de entender o Livro de Receitas. Saudações, felizmente mais terrenas, para a grande Senhora que é Maria de Lourdes Modesto. Saudações para meu Mestre Quitério e o Catedrático David Lopes Ramos! O resto (parafraseando Eça) é paisagem...
A Receita é importante, deve sempre existir depois de ter sido convenientemente validada e experimentada por quem sabe. E dentro do possível coexistindo no mesmo suporte físico (livro) com algumas das suas principais variantes. Claro que, sendo importante, não é tudo...
Penso que foi o Zé Quitério, citando o Padre Manuel José Machado Rebelo (1834-1930) , enorme cozinheiro rústico português, o famoso Abade de Priscos (que inventou o Pudim do Abade) quem nos elucida: " a Receita é só o princípio... As mãos, o olfacto, o paladar do verdadeiro cozinheiro fazem o principal".
Sem a Receita como se faria a "Perdiz à Moda do Convento de Alcântara"? Mesmo que a interpretação que os irmãos Fialho dela fazem, em Évora, seja bem diferente da interpretação (por exemplo) de Fausto Airoldi...
Um aparentemente simples pastel (ou bolinho ) de bacalhau pode ser posto nas mãos de 20 cozinheiros. Mesmo que o bacalhau seja exactamente o mesmo, e a batata seja tambèm idêntica para todos eles, verão como os "bolinhos" não saem todos iguais. E não me refiro apenas ao tamanho.
Hoje fala-se muito da necessidade de se "reinventar" o Receituário português tradicional. Os cozinheiros modernos - e que bons temos hoje! - orgulham-se da sua capacidade de "desmontar" ou de "desestruturar" as antigas interpretações que fizeram a glória das cozinhas tradicionais deste País, de Norte a Sul.
"Está certo meu Patrão"!
Mas recordem-se todos que até para "desmontar" qualquer coisa é mister estar a mesma anteriormente ( bem) montada...
Salvo seja!
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