Festival pagão em que se enalteciam as "carnes" e os seus prazeres mundanos, o Carnaval não tinha (nunca teve) na Beira Alta a importância que assume ainda hoje em Trás-os-Montes, por causa da herança céltica ali mais enraízada e tardia.
A Reconquista Cristâ da Península começou pelo Maciço Central (pelas Astúrias) em direcção a Sul, mas tenho muitas dúvidas que as ancestrais Terras do Marão fossem de facto recuperadas pela Boa Nova de Jesus de Nazaré logo nessa altura. Aliás, há quem defenda que a imposição da lei central do País em tais locais recônditos apenas se terá feito com alguma eficácia depois da criação da...Guarda Nacional Republicana! Isso mesmo, em 1911.
A Páscoa, com os seus tons suaves de aguarela de Watteau e as suas imagens pastoris , deve ter tido uma adesão imediata do bom Povo da Beira, também ele agarrado às ovelhas, ao pastoreio e a uma forma de vida se calhar pouco distinta da dos pastores da Galileia, 2000 anos atrás. Não tanto o Carnaval.
Mas alguma coisa se fazia também no Entrudo, sobretudo para dar satisfação à malta nova. Lembro-me, por exemplo, dos "entrudos", rapazes mascarados de mulheres que partiam à procura das raparigas solteiras da Aldeia, para as rodearem e cantarem as trovas do "demo".
E lembro-me também do Almoço de Terça feira de Carnaval, que nalgumas quintas coincidia (fazia-se coincidir, melhor dito) com o Almoço da Matança (dos porcos).
Nesse dia preparava-se logo de manhã, à laia de pequeno almoço, o quinhão do matador - , vísceras do porco morto na véspera com batatas cozidas e malagueta. Muitas vezes fui eu que as preparei, abusando da malagueta porque nunca fui muito amante de fressura nem de bofe... Logo de seguida, espevitada a fogueira no chão, começavam-se a assar lentamente os fígados , em lascas suculentas (aí já eu me arrimava um pouco mais...). Tudo isto era feito em ar de preparação para o Almoço de Entrudo, a Feijoada com cabeça de porco da Terça-Feira de Carnaval.
Enquanto as mulheres faziam os enchidos do "porco novo", os homens preparavam a Feijoada.
Esta era feita com a feijoca grada aqui da Serra , mas tinha nesse dia obrigatoriamente de conter cabeça, focinho de porco, orelha, faceira, pé. Tudo isto salgado de véspera. De entre os fumados não podia faltar a "barriga" , o "salpicão", o "chouriço de sangue", as "Farinheiras" que pareciam seda, e até algumas rodelas de bom paio se as houvesse.
Dona de Casa que desse aos Homens cozinheiros este "material" , muito dele da matança do ano anterior, era logo louvada como sendo poupada e parcimoniosa administradora dos bens comuns daquela família.
Eram tempos em que o Senhor Porco era, ao mesmo tempo, Mealheiro do Pobre e Mestre de Anatomia ("mata o teu porquinho e vê o teu corpinho").
Eu confesso que quando cheguei à Beira Alta, lá para 1980, já a minha sogra fazia "batota". Pelo menos as carnes salgadas eram compradas fora e deixadas de molho na véspera... Mas os enchidos ainda eram todos nossos.
A Feijoca tem de ser demolhada de véspera. As carnes de porco frescas ficam em salmoura também de véspera. Os enchidos retiram-se na mesma altura da arca, lavam-se bem e pôem-se num alguidar com vinho tinto e louro. O segredo deste prato está apenas na calma com que o molho da feijoca tem de apurar, lentamente.
Cozem-se as carnes (frescas e fumadas) primeiro, excepto as Farinheiras.. Coze-se de seguida a feijoca na água das carnes. Nunca se pôe sal antes de provar , pois as carnes são já salgadas! Reserva-se a água da cozedura. Cortam-se os enchidos.
Faz-se uma "puxada" em azeite, alho e cebola fininha, alguma malagueta esmagada, e nessa puxada introduz-se a feijoca cozida, deitando uma colher da água de cozer a mesma, de vez em quando, para que o refogado nunca pegue e vá apurando. Quase no fim metem-se as carnes já cozidas e os enchidos partidos para ganharem o sabor. 10 minutos antes de retirar para a mesa pôem-se por cima do tachão 2 ou 3 farinheiras inteiras, bem picadas.
E Pronto!
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