Para efeitos gastronómicos que se apercebam nos pratos dos restaurantes das nossas cidades, caça-se em Portugal a perdiz, o coelho bravo, a lebre, o javali e, em jeito de consolação, os tordos e os passarinhos.
Galinholas e narcejas são para os previligiados (excepto as primeiras nos Açores). Gamos e veados nem sempre aparecem e, quando se dão a conhecer, nem sempre têm quem saiba tratar deles.
Muito do que se caça - salvo raríssimas excepções - é "criado" para o efeito. Perdizes completamente selvagens são hoje tão raras em Portugal como os tetrazes grandes (galo silvestre). Salva-se desta "criação" em cativeiro alguma lebre e os coelhos bravos que, pela menor importância económica, não são considerados dignos de com eles se perder tempo e dinheiro para coutar.
São passados os tempos do Sr. João Morgado da Silva Goes (Alvito) que quando abria um dos seus montes para caçar e não apresentava 200 perdizes mortas no 1º dia, enchia-se de vergonha e no ano seguinte não convidava ninguém para ali...
Em Lisboa come-se uma boa perdiz no Galito. De três formas: à moda da Dº Gestrudes, escabechada e estufada. Para mim a primeira dá "10 a 0" às outras, sobretudo se o Sr. Henrique for avisado de antemão... Ainda no Galito podem comer-se nesta altura, passarinhos, tordos, lebre em diversas apresentações, como a famosa lebre bruxa (por encomenda), muitas vezes referida pelo nosso malogrado amigo Alfredo Saramago, e que é divinal.
No Beira Mar em Cascais são famosas as perdizes à moda da Casa, em vinagre e azeite, mas sobretudo as galinholas, estufadas em vinho da Madeira, crâneo com bico disponível para degustar os miolos, e com o paté das tripas ao lado em tostas.
Será no Alentejo e em Trás-os-Montes que brilha mais intensamente esta época da "caça no prato". De Marvão a Beja, passando pelos incontornáveis de Évora, Fialho e Oliveira, sem esquecer as muitas pequenas locandas onde a arte da cozinheira se eleva ao nível do que lhe trazem para fazer. E em Bragança lembro com saudade e gratidão o Geadas e o Solar.
Nem sempre de grandes complicações culinárias vive a caça. Disfarçar (ou realçar) o sabor da "faisandage" parece ser o objectivo das grandes receitas tradicionais. Mas no campo a "moenga" é outra: simplicidade de meios e boa qualidade da matéria prima.
Mestre Mendonça muitas vezes me deu a comer a perdiz do ano, apenas grelhada e temperada com sal, e como esse simples pitéu - desde que a perdiz fosse mesmo boa - superava as combinações mais trabalhadas da cozinha tradicional!
Coma-se a lebre em Évora e em Bragança e apreciem-se as diferenças. Vejam como azeite ou a banha de porco, ou o toucinho, fazem muitas vezes a diferença em ambos os lados.
E vejam sobretudo como é possível usar ambos, em pratos cuja génese tanto pode ser alentejana como nordestina!
Lebre Bruxa (Receita de Nelson Banza - Santiago do Cacém))
Esfole a lebre, aproveitando-lhe muito bem o sangue que deve guardar numa tigela com um pouco de vinagre.
Numa caçarola grande deite as três gorduras: o azeite, toucinho grosso e banha de porco. Junte-lhes a cebola picada, o alho picado e até o ramo de cheiros, deixe alourar e depois meta tudo num bom tacho ao mesmo tempo até a cebola quebrar e ficar macia.
Deite dois copos de vinho tinto e a lebre partida aos bocados grossos.
Deixe ferver em lume brando durante 1 hora.
Ao fim deste tempo separe a carne e passe o molho por um passador fino.
Leve ao lume e adicione sal e pimenta.
Deixe levantar fervura e deite o sangue que guardou.
Ferva mais 5 minutos e está pronta.
Falemos um pouco dos vinhos tintos para acompanhar a caça . De facto, nestes tempos de mudanças em tudo "ao gosto do freguês", parece ser esta uma das últimas leis canónicas que se mantêm no relacionamento entre a comida e os vinhos: tintos para a caça.
Fora o escabeche! Nada acompanha bem o escabeche, a não ser um vinho rosado ou um branco gordo e encorpado (digo eu). Já experimentei também um espumante tinto e ficou bem.
Para uma lebre ou uma perdiz estufada eu escolheria um Dão de grande categoria como o PAPE 2005 , que tem um pouco de Baga, ou um Bairrada clássico e antigo, Sidónio de Sousa de 2005 Garrafeira, por exemplo e se o encontrarem...
Um alentejano de Borba - "Grande Reserva Tinto de 2009" - é também uma boa opção. E mais barato, por cerca de 15 euros a garrafa!
Outros haverá. No Douro, sem dúvida, e também em Trás-os-Montes, onde o magnífico Vale Pradinhos "Lost Corner" de 2010 (15 euros) parece ir muito bem com a inevitável gordura deste tipo de confecção.
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