Quem ainda não o fez em Novembro e Dezembro, por aguardar abastecimentos fidedignos, é em Janeiro que prova as peças ditas "de caça" que por aí aparecem nas ementas dos restaurantes. Mesmo em cima da época da Lampreia, embora digam os entendidos que quem quer lampreia gorda e ovada terá de esperar mais uns dias, lá para Fevereiro.
Para efeitos gastronómicos que se apercebam nos pratos dos restaurantes das nossas cidades, caça-se em Portugal a perdiz, o coelho bravo, a lebre, o javali e, em jeito de consolação, os tordos e os passarinhos.
Galinholas e narcejas são para os previligiados (excepto as primeiras nos Açores). Gamos e veados nem sempre aparecem e, quando se dão a conhecer, nem sempre têm quem saiba tratar deles.
Muito do que se caça - salvo raríssimas excepções - é "criado" para o efeito. Perdizes completamente selvagens são hoje tão raras em Portugal como os tetrazes grandes (galo silvestre). Salva-se desta "criação" em cativeiro alguma lebre e os coelhos bravos que, pela menor importância económica, não são considerados dignos de com eles se perder tempo e dinheiro para coutar.
São passados os tempos do Sr. João Morgado da Silva Goes (Alvito) que quando abria um dos seus montes para caçar e não apresentava 200 perdizes mortas no 1º dia, enchia-se de vergonha e no ano seguinte não convidava ninguém para ali...
Em Lisboa come-se uma boa perdiz no Galito. De três formas: à moda da Dº Gestrudes, escabechada e estufada. Para mim a primeira dá "10 a 0" às outras, sobretudo se o Sr. Henrique for avisado de antemão... Ainda no Galito podem comer-se nesta altura, passarinhos, tordos, lebre em diversas apresentações, como a famosa
lebre bruxa (por encomenda), muitas vezes referida pelo nosso malogrado amigo Alfredo Saramago, e que é divinal.
No Beira Mar em Cascais são famosas as perdizes à moda da Casa, em vinagre e azeite, mas sobretudo as galinholas, estufadas em vinho da Madeira, crâneo com bico disponível para degustar os miolos, e com o paté das tripas ao lado em tostas.
Será no Alentejo e em Trás-os-Montes que brilha mais intensamente esta época da "caça no prato". De Marvão a Beja, passando pelos incontornáveis de Évora, Fialho e Oliveira, sem esquecer as muitas pequenas locandas onde a arte da cozinheira se eleva ao nível do que lhe trazem para fazer. E em Bragança lembro com saudade e gratidão o Geadas e o Solar.
Nem sempre de grandes complicações culinárias vive a caça. Disfarçar (ou realçar) o sabor da "faisandage" parece ser o objectivo das grandes receitas tradicionais. Mas no campo a "moenga" é outra: simplicidade de meios e boa qualidade da matéria prima.
Mestre Mendonça muitas vezes me deu a comer a perdiz do ano, apenas grelhada e temperada com sal, e como esse simples pitéu - desde que a perdiz fosse mesmo boa - superava as combinações mais trabalhadas da cozinha tradicional!
Coma-se a lebre em Évora e em Bragança e apreciem-se as diferenças. Vejam como azeite ou a banha de porco, ou o toucinho, fazem muitas vezes a diferença em ambos os lados.
E vejam sobretudo como é possível usar ambos, em pratos cuja génese tanto pode ser alentejana como nordestina!
Lebre Bruxa (Receita de Nelson Banza - Santiago do Cacém))
1 lebre
vinagre
azeite
toucinho grosso
banha de porco
2 cebolas médias picadas
3 dentes de alho picados
1 molho de cheiros (1 folha de louro, salsa e 1 ramo de manjerona)
2 copos de vinho tinto
sal e pimenta
Esfole a lebre, aproveitando-lhe muito bem o sangue que deve guardar numa tigela com um pouco de vinagre.
Numa caçarola grande deite as três gorduras: o azeite, toucinho grosso e banha de porco. Junte-lhes a cebola picada, o alho picado e até o ramo de cheiros, deixe alourar e depois meta tudo num bom tacho ao mesmo tempo até a cebola quebrar e ficar macia.
Deite dois copos de vinho tinto e a lebre partida aos bocados grossos.
Deixe ferver em lume brando durante 1 hora.
Ao fim deste tempo separe a carne e passe o molho por um passador fino.
Leve ao lume e adicione sal e pimenta.
Deixe levantar fervura e deite o sangue que guardou.
Ferva mais 5 minutos e está pronta.
Falemos um pouco dos vinhos tintos para acompanhar a caça . De facto, nestes tempos de mudanças em tudo "ao gosto do freguês", parece ser esta uma das últimas leis canónicas que se mantêm no relacionamento entre a comida e os vinhos: tintos para a caça.
Fora o escabeche! Nada acompanha bem o escabeche, a não ser um vinho rosado ou um branco gordo e encorpado (digo eu). Já experimentei também um espumante tinto e ficou bem.
Para uma lebre ou uma perdiz estufada eu escolheria um Dão de grande categoria como o PAPE 2005 , que tem um pouco de Baga, ou um Bairrada clássico e antigo, Sidónio de Sousa de 2005 Garrafeira, por exemplo e se o encontrarem...
Um alentejano de Borba - "Grande Reserva Tinto de 2009" - é também uma boa opção. E mais barato, por cerca de 15 euros a garrafa!
Outros haverá. No Douro, sem dúvida, e também em Trás-os-Montes, onde o magnífico Vale Pradinhos "Lost Corner" de 2010 (15 euros) parece ir muito bem com a inevitável gordura deste tipo de confecção.