sexta-feira, janeiro 01, 2010

O Sacristão do Ano Novo


Nota Prévia: isto é ficção! Embora tenha alguns factos reais... Mas não digo quais são.

Houve tempos em que a vida de sacristão , aqui na província, era boa e recomendava-se.. Interlocutor da espalhadíssima beatice e seu intermediário junto do pároco, essa "mediação" não deixava de lhe dar galinhas e ovos, por vezes algum cabrito ou queijo da serra.

A hierarquia religiosa tinha Deus Nosso Senhor, depois os Anjos e os Santos que "intermediavam" as relações dos crentes com a Divindade, depois o Padre que "intermediava" as relações com os Anjos e Santos, em seguida o Sacristão que abria a porta do Padre, e por aí abaixo, recomeçando na beata mais poderosa da paróquia (que controlava a Irmandade) e terminando na mais jovem criancinha da catequese.

O "poder" do Sacristão era mais visível nas alturas dos baptizados, casamentos e funerais. É claro que para tudo isto era necessário falar sempre com o Padre, mas quem dava a indicação sobre a altura ideal para a entrevista era o Sacristão.

Os Padres - nessa altura -  ainda não vinham à porta despedir-se dos paroquianos e as conclusões do Concílio Vaticano II do Bom Papa João (Cardeal Roncalli) pareciam demasiado liberais para estas freguesias da serra... Boas para as cidades e para as suas "elegâncias" , talvez, mas definitivamente desajustadas da vida religiosa de locais onde ainda não havia electricidade em casa , nem saneamento básico...

Mas tudo isto ia paulatinamente mudando...

Ora um dos Sacristãos que oficiava aqui na Paróquia lá para os anos 70 - O Jorge , por alcunha "Chalana" devido à simpatia clubística -  começou a sentir amargamente o efeito dos modernismos na sua bolsa (e barriga...) . De tal forma que se atreveu a pedir aumento ao Pároco, dizendo que daquela maneira não podia sustentar a Mulher nem os filhos.

O Padre - cujo rendimento ao tempo vinha das esmolas dos crentes e dos casamentos , baptizados e funerais que fazia - respondeu-lhe que não podia.  Com a diminuição de casamentos e de nascimentos na aldeia (e sobretudo das esmolas na missa dominical, pois havia aqui muita emigração) restava-lhe esperar pela morte dos paroquianos... Mas nem aí se safaria, dado que com a construção do novo hospital e com o sistema nacional de saúde Arnault , os velhinhos iam ficando cada vez mais velhinhos...

 "-Também porque é que Vocemecê se casou? Sacristão devia ser celibatário, como os Padres, devido à dignidade da função!"

O nosso Sacristão não gostou de ouvir e , em desespero de causa, começou a servir-se de vez em quando do cofre da Irmandade, da qual era tesoureiro. Muito bom tesoureiro, aliás, pois não deixava passar nenhum Agosto que não andasse pelas casa dos emigrantes a pedir para a dita Irmandade. Et pour cause...

As Festas iam-se fazendo, os andores andavam bem ataviados, as irmãs e irmãos lá se reuniam uma ou duas vezes por ano para falarem da organização das ditas festas, mas tudo confiava no Tesoureiro, a quem nunca eram pedidas contas...

Até que o velho pároco se aposentou, dando entrada a um "homem novo"... Novo em tudo, na idade e no entendimento do relacionamento com os paroquianos. E, imaginem, de tal modo intrometido que até quis ver as contas da Irmandade!

Com o desespero na alma o Sacristão decidiu simular um roubo. Como morava ao lado da Igreja tudo lhe pareceu relativamente fácil: Iria à Sacristia já de noite, por ter ouvido algum ruído, dava uma queda que lhe permitisse mostrar alguma maleita, previamente arrombava o cofre da Irmandade e terminaria a cena com o toque a rebate dos sinos , para que o pessoal serrano testemunhasse a ocorrência.

A data escolhida para a a tramóia seria a noite de fim de ano, onde toda a gente da aldeia cozia a bebedeira apanhada à espera da meia noite.

Nessa passagem do ano geava a sério e fazia um frio de rachar. Ninguém andaria cá por fora lá para as duas ou três da manhã...

Excepto - está claro - os famosos compadres borrachos Manuel da Angélica, Zé Peido Manso (já conhecido de outras lides) e Ti Correia Môco (era surdo como uma pedra). Esta prestigiada trupe tinha andado toda a santa noite de adega em adega , e já com os tanques atestados não era uma geadazita que lhes fazia medo. Pelo contrário, até se achariam num clima tropical...

Uma (não a única) consequência das bebedeiras era a necessidade de desapertarem as braguilhas frequentemente. E, à boa maneira portuguesa, quando um o fazia lá tinham os outros dois que desabraguilhar também, regando principescamente alguma parede mais acomodatícia.

Tal era o tamanho da "cadela" com que se encontravam (ou não estivéssemos no reino dos serra-da-estrela) que não deram por estarem  encostados ao muro da Igreja numa das alturas em que deram largas (muito largas) às respectivas precisões.

Nessa altura exacta o Sacristão estava a partir o cofre à martelada, nem a 5 metros do urinol improvisado.

-"Oh Manuel tás a ouvir isto?"  perguntava o Peido Manso.
-" Tou, tou, parecem coices de mula nalguma porta".
- "Qué que vocês tão prá aí a ladrar?" retorcava o Môco, que ouvir , não ouvia nada, mas ainda via bem demais.

 O Sacristão continuava a martelar.

- "Atão isto não é alguém a bater?" tornava o Zé.
-"Ai C**** Nã me digas que mijámos na parede do cemitério e vem por aí alguma alma penada!!"
- "Tais bêbedos ou quê??!! Onde é qu'isto é o cemitério? Ainda agora estávamos à porta da tua adega Manel!"

O Ti Correia Môco, que via bem, lá olhou para cima e descortinou por entre os fumos do alcoól uma torre sineira com  cruz.

- "Querem lá ver que estamos mas é na Igreja?"
- "Oh Diabo!! vamos mas é desandar antes que alguém nos veja!"

Nessa altura o Sacristão veio para fora e deixou-se caír pelas escadas abaixo do adro, conforme tinha congeminado. Caíu e ...veio parar em cima do Zé Peido Manso, que já tinha dado corda aos sapatos primeiro que todos. Tal foi  o baque que o Zé perdeu os sentidos logo ali.

-" Ai que me mataram agora mesmo, ali na sacristia!" Gritava o sacristão.
-" Oh Chalana, Olhe que não fomos nós! Foram dois cães que ali mijaram e eu ainda os vi a fugir!" dizia o Ti Môco, sem ouvir nada das lamentações do sacristão.
-" Ai que me dói o corpo todo" repetia o desgraçado
-" DOIS CÃES , VÍRGULA, COMPADRE CORREIA! FORAM TRÊS QUE EU BEM OS VI!" reforçava o Manel, aos gritos para o outro o entender. E continuou:
- "O COMPADRE ZÉ TÁ MUITO CALADO?"
-"Olha, pôs-se para aqui a dormir!Temos que o levar para a Sacristia"
-" Para aí não que ainda podem lá estar os ladrões!" vociferava o Chalana.
-" Mas estiveram aqui ladrões?" perguntava o Manel, antevendo uma janela de oportunidade.

E logo continuou:

-"OH COMPADRE CORREIA (aos berros, já se sabe) V. TEM A CERTEZA QUE ERAM CÃES QUE ALI MIJARAM?? NÃO SERIAM OS LADRÕES DO NOSSO SACRISTÃO?"

 O Ti Môco era surdo mas não era parvo... E logo apanhou a ideia:

-"Ladrões e dos grandes! Três ou quatro! Grandes porcos! A mijarem na Igreja depois de a terem roubado! Já não há respeito! Eu ainda vi um que trazia barba!"

E foi assim que o Chalana se safou com a safadeza, arranjando quando menos o esperava três testemunhas credíveis (bem, duas, porque o Zé Peido Manso só deu de si para o almoço do Ano Novo).

Um comentário:

Fernando Bernardo disse...

"Nota Prévia: isto é ficção! Embora tenha alguns factos reais... Mas não digo quais são."

Factos reais!?
Hum... A "cadela", não!?
Eheheheh...

Bom Ano!