Enquanto os MCS debitam (regurgitam, vomitam, antecipando já a fala de Herberto) diariamente a sua sondagem e os dirigentes partidários continuam na romaria da "carne assada" (parece que este ano destronada pelo "arroz de pato"), os eleitores e outros não votantes deste país aguardam por mais uma jornada futebolística.
Que maçada estarem os jornais e as TV's a perderem tempo com "a política" quando o caso Carrilho não está resolvido? E quando não se sabe bem se o grande derby de Lisboa contará (ou não) com o William no meio campo?
No dia 4 de Outubro o Benfica vai à Madeira jogar com o União, o FCP recebe o Belenenses e o SCP também recebe em casa o Vitória de Guimarães.
Dizem que nessa noite a TVI vai estrear o Big Brother na sua encarnação 325 (ou coisa parecida).
No intervalo temos as eleições... que maçada (outra vez)!
Enquanto esperamos (seja pelo jogo seja pela mesa de voto) dou-vos um grande poema: "A bicicleta pela lua dentro". De meu Mestre Herberto Helder.
Em Herberto as sensações irrompem e superam irresistivelmente os sentimentos e as ideias. Quando lemos este poeta abandonamos o lirismo contemplativo para nos entregarmos a uma escrita mais primeva, vulcânica, incontida, raivosa até.
É o primado da "mulher" como começo e fim de tudo, nas suas diferentes interpretações como "mãe", "amante" e "feiticeira".
A bicicleta pela lua dentro - mãe, mãe -
ouvi dizer toda a neve.
As árvores crescem nos satélites.
Que hei-de fazer senão sonhar
ao contrário quando novembro empunha -
mãe, mãe - as telhas dos seus frutos?
As nuvens, aviões, mercúrio.
Novembro - mãe - com as suas praças
descascadas.
A neve sobre os frutos - filho, filho.
Janeiro com outono sonha então.
Canta nesse espanto - meu filho - os satélites
sonham pela lua dentro na sua bicicleta.
Ouvi dizer novembro.
As praças estão resplendentes.
As grandes letras descascadas: é novo o alfabeto.
Aviões passam no teu nome -
minha mãe, minha máquina -
mercúrio (ouvi dizer) está cheio de neve.
Avança, memória, com a tua bicicleta.
Sonhando, as árvores crescem ao contrário.
Apresento-te novembro: avião
limpo como um alfabeto. E as praças
dão a sua neve descascada.
Mãe, mãe — como janeiro resplende
nos satélites. Filho — é a tua memória.
E as letras estão em ti, abertas
pela neve dentro. Como árvores, aviões
sonham ao contrário.
As estátuas, de polvos na cabeça,
florescem com mercúrio.
Mãe — é o teu enxofre do mês de novembro,
é a neve avançando na sua bicicleta.
O alfabeto, a lua.
Começo a lembrar-me: eu peguei na paisagem.
Era pesada, ao colo, cheia de neve.
la dizendo o teu nome de janeiro.
Enxofre — mãe — era o teu nome.
As letras cresciam em torno da terra,
as telhas vergavam ao peso
do que me lembro. Começo a lembrar-me:
era o atum negro do teu nome,
nos meus braços como neve de janeiro.
Novembro — meu filho — quando se atira a flecha,
e as praças se descascam,
e os satélites avançam,
e na lua floresce o enxofre. Pegaste na paisagem
(eu vi): era pesada.
O meu nome, o alfabeto, enchia-a de laranjas.
Laranjas de pedra - mãe. Resplendentes,
estátuas negras no teu nome,
no meu colo.
Era a neve que nunca mais acabava.
Começo a lembrar-me: a bicicleta
vergava ao peso desse grande atum negro.
A praça descascava-se.
E eis o teu nome resplendente com as letras
ao contrário, sonhando
dentro de mim sem nunca mais acabar.
Eu vi. Os aviões abriam-se quando a lua
batia pelo ar fora.
Falávamos baixo. Os teus braços estavam cheios
do meu nome negro, e nunca mais
acabava de nevar.
Era novembro.
Janeiro: começo a lembrar-me. O mercúrio
crescendo com toda a força em volta
da terra. Mãe - se morreste, porque fazes
tanta força com os pés contra o teu nome,
no meu colo?
Eu ia lembrar-me: os satélites todos
resplendentes na praça. Era a neve.
Era o tempo descascado
sonhando com tanto peso no meu colo.
Ó mãe, atum negro —
ao contrário, ao contrário, com tanta força.
Era tudo uma máquina com as letras
lá dentro. E eu vinha cantando
com a minha paisagem negra pela neve.
E isso não acabava nunca mais pelo tempo
fora. Começo a lembrar-me.
Esqueci-te as barbatanas, teus olhos
de peixe, tua coluna
vertebral de peixe, tuas escamas. E vinha
cantando na neve que nunca mais
acabava.
O teu nome negro com tanta força —
minha mãe.
Os satélites e as praças. E novembro
avançando em janeiro com seus frutos
destelhados ao colo. As
estátuas, e eu sonhando, sonhando.
Ao contrário tão morta — minha mãe —
com tanta força, e nunca
— mãe — nunca mais acabava pelo tempo fora.
Herberto Helder, in 'Poemas Completos'
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