Hoje de manhã , à saída da Versailles, reparei numa carrinha de caixa aberta, já idosa, que trazia pendurado na porta traseira (de acesso à carga) o letreiro: "Fazem-se Restaurações".
Pensei logo que se tratava de algum descendente dos "conjurados de 1640", o qual teria caído em desgraça por causa da crise económica , tendo por causa disso decidido oferecer publicamente os seus serviços de "restaurador" à pátria, ou a quem mais o necessitasse.
Podia também ser uma manobra publicitária do Sr. Vice-Primeiro Ministro Paulo Portas, já inebriado com a iminente "restauração" da nossa soberania, nós que estaríamos (segundo ele) sob um regime de protectorado.
A ideia mais prosaica era evidentemente estarmos na presença de um profissional da construção civil, que seria perito em "restaurar" casas e apartamentos, fachadas e chãos de cozinha, portas e janelas. Muito capaz de instalar na perfeição alguma "marquise", acessório que já foi tão de moda lá para os lados de Belém.
Eu teria algumas dúvidas, porém, em adjudicar-lhe algum trabalho.
Isto porque a carrinha em causa exibia orgulhosamente na janela traseira um cachecol do Sporting Clube de Portugal onde se lia: "Sporting Campeão Nacional 2001\2002".
O problema nem era a simpatia clubística (nessas coisas sou um liberal) mas sim a idade provecta do artefacto, tão desbotado do sol e do tempo que já nem se via a corzinha... Imaginem a idade do "operário"...
Deixemos estes detalhes e passemos à poesia. Para rimar com "Restauração" de uma forma que não seja nem imediata, nem Pimba (o inefável "coração" vem à memória imediatamente) sugiro que se glose hoje - 4 de Abril - mês da Liberdade, outra palavra : "Libertação".
Do poeta angolano Antero Alberto de Abreu (Luanda, 1927) aqui vos deixo um soneto:
Libertação
Das mentiras loucas que me envolvem
Vou quebrando os liames um a um
E da angústia da libertação
Nascerá um dia a paz
Do ser e do não ser.
Das mentiras vãs que me amordaçam
Os véus arrancarei a um e um
Tristes despojos dum passado velho
Que em mim se quis perpetuar.
E deixarei um rasto de desilusões;
Um caminho de lágrimas choradas;
Um pouco do que fui em cada dia.
Mas ficarei seguro e afirmado,
Com a serenidade dum Buda na floresta,
Com a nudez dum Cristo no redil.
Antero Alberto de Abreu - Permanência - Lisboa, Edições 70
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Um comentário:
Neste périplo pela lusofonia não podíamos deixar de visitar a poesia de S. Tomé e Príncipe:
Raúl Kwata Vira Ngwya Tira Ponha
As alegres calças, de palhaço, não eram suas.
Não era sua a camisa.
O castanho e o preto
nos pés esquerdo e direito
eram de outro.
Inteiro, de bom cabedal
O cinto não condizia – luzia.
A própria magreza do osso miúdo
não lhe pertencia – pairava.
Tossia muito, tropeçava.
Arrastava com ele dois olhos
raposinos, trocistas, de maroto
e era dono de um riso estilhaçado –
o seu escudo.
Nos passos carregava um arsenal
de histórias vivas, antigas
e tinha o poder de arrancar gargalhadas.
Sabia os nomes de todas as roças –
em nenhuma ficava sua aldeia.
Morreu pária na ex-colónia.
Está enterrado na ilha.
Não reparou na nova bandeira.
Conceição Lima in “A dolorosa raiz do micondó”
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