Com a devida vénia e chapelada a meu mestre VPV, aqui vai, para esclarecer quem tem as memórias mais fracas:
"O primeiro-ministro
anunciou que Portugal não voltará tão cedo, se voltar, à relativa prosperidade
de 2011. Outras personagens que o apoiam e o aprovam prevêem tranquilamente o
empobrecimento progressivo do país. Nenhuma delas parece ter vivido os tempos de
fome e desespero que duraram muito mais de 40 anos, durante a República,
Salazar e Caetano.
Com
30 anos no “25 de Abril”, não me esqueci depressa do que era a vida nessa
altura. Não falo da esquálida miséria do campo, que numa região rica a uns
quilómetros de Lisboa, em que as pessoas trabalhavam o dia inteiro, envelheciam
depressa e morriam de qualquer maneira, sem diagnóstico e sem assistência. Como
não falo da província – do Minho ao Algarve – onde o horror se tinha tornado a
normalidade. Na falta de uma experiência directa, seria um impudor.
Mas não me importo de falar
da classe média (de resto privilegiada) em que nasci: e posso dizer que a
pobreza contaminava tudo. O que se vestia, o que se comia, o que se fazia, o
que se pensava. Mais do que na gente que mandava no Estado e no cidadão comum,
a tirania estava, como dizia o outro, na necessidade de poupar, na privação
perpétua da frivolidade e do prazer, no mundo imóvel e sem saída, que pouco a
pouco se tornava numa prisão a céu aberto. As dores de crescimento num liceu de
crianças caladas, que muito manifestamente esperavam o pior e, a seguir, numa
Faculdade, que se destinava a premiar os filhos de família e a submissão, não
levavam a uma descoberta ou sequer a uma aprendizagem, no seu melhor levavam a
uma espécie de punição que moía e predispunha à desistência e ao cansaço.
O Portugal de hoje não
conseguiria nunca perceber o Portugal de 1950 ou de 1960. Agora, até se
glorifica o crescimento da economia e a estabilidade financeira do regime. O
primeiro-ministro com certeza nunca se deu ao trabalho de imaginar aquilo a que
a pobreza haveria condenado um rapazinho de Trás-os-Montes com uma mediana boa
voz. Nem lhe descreveram o deserto que foi Lisboa nessa época de chumbo, onde
ir ao café ou a um cinema de “reposição” tomavam as proporções de um
acontecimento. Os sinais que o país começa a voltar atrás são claros. Verdade
que a civilização que entretanto se criou não vai desaparecer. Mas nada disso
consola se imitações substituírem o que existia antes e acabarmos na
mediocridade e na tristeza de uma simples sobrevivência sem destino."
Um comentário:
Ralph Fox, um inglês que em 1936 passou algum tempo em Portugal para investigar a rectaguarda de Franco em Lisboa, sondando os caminhos do tráfico de armas e as vias de apoio do governo português aos fascistas espanhois, escreveu as suas impressões sobre o nosso país daqueles tempos:
“Em Lisboa, as criancinhas são realmente importantes, pois é frequente que sejam elas a única fonte de sustento das suas famílias. Há óptimas leis sobre a utilização de crianças no trabalho – excelentes, de facto, mas que não abrangem as industrias onde o trabalho infantil é mais explorado, Destas, as principais são as indústrias da hotelaria e da restauração. Rapazinhos de uniforme, pálidos e cansados, são vistos a abrir e fechas as portas dos elevadores nos hotéis de Lisboa até à meia-noite, começando a trabalhar de manhã cedo”.
[Ralph Fox in Portugal Now – 1936]
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