sexta-feira, abril 15, 2011

Para Descansar a Vista

Sobre o Egoísmo (ou talvez não) um poema forte do grande Fernando Pessoa, aqui "travestido" das roupagens do Mestre dos seus heterónimo, o avesso à filosofia,  bucólico e campestre Alberto Caeiro.

Nestas épocas de crise é necessário  em primeiro lugar Viver. Depois...o resto.

Ontem à Tarde um Homem das Cidades

Ontem à tarde um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm fome,
E dos ricos, que só têm costas para isso.

E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele dizia que sentia.

Mas eu mal o estava ouvindo.
Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu — não sofrerão.
Todo o mal do mundo vem de nos importarmos
uns com os outros,
Quer para fazer bem, quer para fazer mal.
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.

Querer mais é perder isto, e ser infeliz.

Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até às lágrimas),
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos
A esse entardecer
Não parecia os sinos duma capela pequenina
A que fossem à missa as flores e os regatos
E as almas simples como a minha.

Louvado seja Deus que não sou bom,
E tenho o egoísmo natural das flores
E dos rios que seguem o seu caminho
Preocupados sem o saber
Só com florir e ir correndo.

É essa a única missão no Mundo,
Essa — existir claramente,
E saber faze-lo sem pensar nisso.

E o homem calara-se, olhando o poente.

Mas que tem com o poente quem odeia e ama?

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XXXII"

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