quinta-feira, dezembro 21, 2006

Comer sobre Rodas


Refeições a bordo de um Comboio são aqui glosadas pelo nosso especialista residente, Maurício Levy, a quem se perdoa a extensão do texto pela alta qualidade do mesmo, técnica e "tácticamente" falando e bem divertida:

Como todo o “bon vivant”, gosto de bons restaurantes. Segundo a célebre anedota (se insistirem muito eu conto) estarei assim na segunda idade do homem (nada mau). Leio com interesse, quando posso crónicas sobre (novos) restaurantes e procuro visitá-los pelo menos uma vez para ficar com uma (vaga) ideia do que representam. Mas hoje venho falar-vos de um óptimo restaurante certamente desconhecido de 99,9% da população portuguesa e injustamente depreciado certamente pela maioria dos críticos gastronómicos da nossa praça.

Para se encontrar o dito restaurante deverá o leitor ser feliz possuidor de um bilhete de comboio para Paris ou Madrid
[1] e dirigir-se, cambaleando um pouco (não por acção de qualquer aperitivo mas pelo balançar da carruagem) até á carruagem-restaurante do “Sud-Express” (no primeiro caso) ou do ”Lusitânia comboio hotel” (no segundo), após a passagem da sineta que anuncia a disponibilidade das mesas.

O percurso já é em si uma aventura agradável, enfileirando com outros passageiros que igualmente pretendem jantar na dita carruagem e espreitando, em são exercício de curiosidade pelos diversos microcosmos revelados á passagem pelos compartimentos que pontuam os corredores das carruagens que nos separam do nosso destino. Lembro a propósito a afirmação de uma amiga que centrava o charme das viagens de comboio nos fugazes encontros e trocas de palavras entre passageiros, cruzando-se nos corredores estreitos das carruagens – “desculpe” “faça favor” declinado em várias línguas e acompanhado de sorrisos fugazes, ou ainda o manancial de informações que Poirot retira(va) desses curtos mas intensos momentos.

Quão diferente da viagem rodoviária que nos levaria até ao nosso restaurante sedentário, se essa tivesse sido a nossa escolha!

Percorrido com sucesso o caminhos dos balanços que nos põe “em situação”, eis-nos entregues ás sábias mãos dos empregados da carruagem-restaurante que, pelo menos no caso dos meus amigos da MINC-BARP, que é concessionária da restauração (permitam que não use a palavra “catering”) no “Sud-Express”, num ápice nos “medem” e se apercebem do nosso estado de espírito – se abertos à partilha da mesa (são por vezes de 2 e 4 lugares e outras só de 4 lugares- depende do “lay-out” da carruagem) com quem for que nos couber em sorte ou se parece preferirmos absorver-nos em prazer egoísta de contemplação da paisagem que diante de nós irá correr e dos pensamentos que ela nos inspirará.

Uma vez instalados, é altura de gozarmos a paisagem que desfila diante dos nossos olhos e abrirmo-nos ao prazer único da gula nómada.


Ele é o cálice de Porto como aperitivo ao passarmos em pequena velocidade quase que dentro das casas de pedra de uma qualquer povoação que se “abre” à nossa invasão, ele é a degustação (sim, degustação que o “ambiente” empresta novo valor aos sabores) das tostinhas com pasta de sardinha ou manteiga ao avistarmos uma albufeira sobrevoada numa qualquer impressionante ponte da Beira Alta (se for esse o caso), ele é a admirativa apreciação do “ballet” de prodigioso equilíbrio com que os empregados nos servem o prato principal, sem falhas, antecipando o sentido e amplitude dos balanços, ele é o gozo pecaminoso de comermos a sobremesa parados numa qualquer estação apreciando o olhar surpreendido e levemente invejoso da nossa “qualidade de vida” que nos dirigem os que, lá fora, esperam um qualquer comboio sem as amenidades do nosso, ele é o prazer de utilizarmos os pequenos conhecimentos dos “insiders” ao vertermos vinho no copo (segurando o copo numa mão e o vinho na outra, em atitude que seria contra a etiqueta num restaurante sedentário, mas que constitui segredo passado de geração em geração para evitar entornar o líquido em caso de balaço mais acentuado), ele é o nec plus ultra do “frequent rider” ao anteciparmos o efeito devastador da curva de Vila Franca das Naves, segurando copos e garrafas e evitando as catástrofes que essa curva irá induzir nas outras mesas.

Ele é também, se essa for a nossa opção, o prazer de conhecermos outras pessoas e de trocar com elas frases de circunstância, e de fazermos evoluir essa aproximação mútua de forma que só a carruagem-restaurante permite (vá lá saber-se porquê), com gradações claramente diferentes se se tratar de almoço ou jantar.

Para quem quiser “entrar” no jogo o ambiente é claramente mágico – os romancistas sabem-no bem, assim como os escritores de romances policiais - e pouco importa que, no capítulo estrito do tratamento palatal possa o ágape não estar á altura do Gambrinus – sabe o autor desta crónica, de ciência certa que o seu palato, mesmo contra toda a evidência científica, apreciou superiormente o Aperitivo e Digestivo (moscatel ou aguardente velha), o “couvert”, o pão regional, o “creme bela fazendeira”, o “lombo de porco no forno à transmontana com arroz de passas”, o “toucinho do céu de Murça” e a “salada de frutas au Porto”, bem como o vinho maduro branco Porca de Murça (Douro) e o vinho maduro tinto Barão de Figueira (Beiras)
[2], em relação ao seu jantar no “Gambrinus, pontuado por envio de beijinhos entre os empregados (não, não é o que estão a pensar, é a maneira educada e pouco intrusiva com que chamam a atenção uns dos outros quando há serviço a fazer) e ordens de “trazer á mesa o prato do Sr Engº João Talone” que, pelos vistos, nesse dia de Gambrinus fazia-nos companhia noutra mesa, juntamente com o pilar gambrinense que é o Fernando Lopes, invariavelmente sentado no balcão do dito restaurante.

Como tudo na vida (tudo na vida tem um fim excepto a salsicha que tem dois) as viagens gastronómicas têm pontos altos e que nos ficam na memória (difícil lembrar-me de pontos baixos numa carruagem-restaurante) – e a melhor maneira de voltar a saboreá-los é partilhá-la convosco.


Fiquemo-nos então apenas por três ou quatro apontamentos que para sempre connosco irão viajar.

Comecemos por relembrar uma viagem Lisboa-Porto num rápido com serviço de carruagem-restaurante (para os interessados uma carruagem Budd, já hoje retirada do serviço) em luz crepuscular e com a bateria da dita carruagem avariada, o que fazia com que a iluminação interior do restaurante )alimentada unicamente pelo gerador) oscilasse ao sabor da velocidade do comboio e introduzisse um elemento de “suspense” romântico ao ambiente (conseguiremos ver a comida?).

Sigamos agora para paragens mais longínquas e experiências internacionais, com uma viagem no Glacier Express, mítico comboio que serpenteia pelos cumes suíços
[3] e seus glaciares, com refeição abundantemente regada com “Champagne” e libações entre os passageiros e os participantes num “rally” de “Donas Elviras” que, a passo de caracol (por mais interessados nas vistas e no Champagne do que na velocidade) circulava na estrada imediatamente adjacente á linha férrea[4]

Regressemos a Portugal, perto embora da fronteira com Espanha, para “viajarmos” na quadra natalícia e descrevermos um jantar na noite de Natal (a caminho de ir ter com a família, já previamente “na terra” felizmente situada em zona servida pelo “Sud-Express”) em que os poucos clientes dessa noite eram tratados pelos empregados com um carinho especial, culminando com a oferta de filhozes “feitas pela mulher do cozinheiro” e distribuídas de graça pelos clientes completamente surpreendidos (sobretudo se estrangeiros) por essa atenção que não lhes “quadrava” nas atitudes “normais” de empregados de restaurante.

Mudemos agora de registo mas não de intensidade de prazer para descrever os pequenos-almoços servidos após uma noite de carruagem-cama, enquanto o comboio desfila pela lindíssima paisagem do país basco, coberto de neve e com o calor do ambiente e do café com leite (e da aproximação a território de França que, para um jovem e nos anos do pré-25 de Abril muito queria dizer) a fazer contraste com o frio exterior, deixando lugar para uma descontraída apreciação da “tostada” e do brioche e do cerimonial do encher do copo de café com leite, deitado simultaneamente de dois bules, um em cada mão do empregado, cruzando os jactos de líquido, tudo isto num comboio em movimento e com apreciáveis balanços, frequentes na via férrea basca

Com tudo isto, caro leitor, sustento e julgo que posso considerar “c.q.d.” que não há experiência gastronómica que se compare ao uso de uma carruagem-restaurante. Perdida a batalha que em tempos (antes de 1998) travei para a inclusão de uma dessas carruagens nos “Pendolino Lisboa-Porto” (carruagem que, aliás, existe na versão original circulando em Itália), essa inesquecível experiência pode apenas ser gozada em Portugal a caminho de Paris ou Madrid
[5] (mas não é preciso ir “all the way”), recomendando-se sobretudo a primeira. Cesse tudo o que a musa canta sobre os restaurantes sedentários[6], que outro valor mais alto se “alevanta” [7]



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[1] Poderá também gozar as mesmas delícias fazendo uma viagem como por exemplo as que a “minha” associação de amigos dos caminhos de ferro (APAC) organiza todos os anos, com carruagens restaurante e almoço “en route”
[2] Quem quiser visitar o espaço acanhado no qual as refeições em carruagem-restaurante são integralmente preparadas (repito: integralmente – o que já não é usual noutros países) perceberá o milagre diário que é esse tipo de serviço – e quando souber o que ganham esses milagreiros, ficará sem perceber de todo
[3] Uma das coisas que mais agradavelmente impressiona na Suiça dos caminhos de ferro métricos (cantão dos Grisons ou Graubunden, por exemplo) é o silêncio que invade as paragens em estação, que a pouco e pouco fica dominado pelo chilrear dos pássaros e pelo ruído das cascatas. É coisa que nunca se esquece!
[4] Os copos do “Glacier Express” têm a base inclinada em ângulo com a haste, para ficarem direitos nas mesas quando o comboio enfrenta as impressionantes pendentes do percurso
[5] Ou em algumas viagens da Associação portuguesa dos Amigos dos Caminhos de Ferro, mormente o passeio de aniversário, normalmente em Novembro e de cujo menu deste ano nos servimos no texto
[6] O meu amigo cozinheiro Michel chegou, porém, um dia a contactar-me com a ideia de fazer o “mais comprido restaurante do mundo” comprando varias estações desafectadas ao longo da linha do Douro e transformando-as num restaurante no qual o cliente podia iniciar o seu almoço numa delas e continuar a comer os diversos pratos ao longo de uma viagem pelos outros. Era uma espécie de “sedentarismo móvel” como diria o “meu” aspirante do tempo da tropa, inventor do conceito do “olhar fixamente móvel”
[7] Das experiências de carruagem-cama outro dia poderia também muito se contar. Do prazer da contemplação da Lua através da paisagem nocturna ,toda em silhueta, ou da experiência única de se viajar em carruagem em que a iluminação normal, por avariada, tinha sido “substituída” por um “cordel de lâmpadas” espalhado ao longo do corredor, como se de uma iluminação de árvore de natal se tratasse, “rebentando-se as lâmpadas á media que os balanceamentos da carruagem as fazia chocar contra as portas dos compartimentos

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