segunda-feira, dezembro 11, 2006
Crónicas de Viagem - O Sud Expresso
O Amigo Maurício, o apaixonado e conhecedor homem de Comboios, entra nesta campanha com o seguinte, e magnífico, texto:
Sou o último viajante – recordações do “Sud-Expresso”
Sim, sou o último viajante. Ou melhor pertenço à última geração de viajantes. Os que se seguem a mim não viajam, são transportados.
Partem de um ponto e chegam a outro, sem qualquer vontade de cederem à magia da viagem. O tempo gasto entre a partida e a chegada deve, para eles, ser o mínimo possível, o olhar inquisitorial para a paisagem na tentativa de adivinhar as lentas ou rápidas, óbvias ou subtis alterações do ordenamento do território ou da geografia humana são exames inúteis e sem interesse.
A janela do comboio ou do automóvel não trazem qualquer apelo que possa superiorizar-se ao de uma contemplação do nada ou, melhor ainda, de um jogo de gameboy ou outro videojogo da moda.
Quando muito a janela do avião pode merecer olhares esparsos, mas apenas para garantir a imutabilidade da vista – nem sequer a análise das formas caprichosas de cirros, estratos, cúmulos ou nimbos apresenta qualquer interesse.
“Beam me up Scotty” – o transporte instantâneo – bem poderia ser o seu grito de guerra. A paisagem é sempre monótona, a viagem um inconveniente que se deve suportar para chegar ao ponto de chegada. Assim atravessam os meus filhos os vales da Lombardia, as paisagens dos Pirinéus, a Catalunha ou o “plat pays” que era o de Jacques Brel.
Mas não.
Além do prazer da partida e da chegada a outros sítios, a viagem, em si, para os “últimos viajantes” é um valor, um prazer, a descoberta do lento evoluir do território e das suas gentes, a transformação do conhecido em desconhecido, a descoberta das diferenças. E as vistas e os sons criam uma geografia que não mais se esquece, que nos acompanha e tem tanta importância quanto o conhecimento que iremos adquirir do nosso destino.
A viagem torna-se assim a lenta e agradável preparação para a chegada.
Para mim, por exemplo, a Espanha era o momento em que ouvia, na entrada da noite gritos de “oye Paco” a substituírem os anúncios por altifalante que me informavam que estava de passagem pela “estação de Vilar Formoso – o comboio estacionado na linha número um é o comboio “Sud-Expresso” com destino a Paris”, e o som da sineta inconfundível das estações de caminho de ferro espanholas (não por acaso comprei uma sua miniatura que guardo religiosamente em casa, aquando dos 150 anos da ferrovia do país irmão) acompanhava a minha travessia do território espanhol pela noite fora, pontuada de uma diversidade de apitos de locomotivas a vapor que me indicavam sem falhas o troço de via que estava a percorrer, ciência que a custo tinha conquistado vencendo o sono e descobrindo, umas vezes através da janela da carruagem-cama mas outras vezes obrigando-me a sair para os gélidos cais das estações, qual o local onde estava, mesmo se obedecessem a nomes tão fora das toponímias conhecidas como são os de Medina del Campo, Miranda de Ebro, Alsasua e outros.
E se Portugal era um Tejo pouco interessante, a variedade que a Beira Alta oferecia era anunciada pela música das vendedeiras de água e arrufadas de Coimbra da estação “B” dessa cidade, onde o comboio parava. E se a nossa invariável presença na carruagem-restaurante nos fazia dispensar a compra das vitualhas anunciadas, a canção entoada por essas vendedeiras era uma “paisagem sonora” inesquecível (pena não poder incluir som nesta crónica, para transmitir essa toada que, quem sabe, será, em detrimento das que a religião me prescreve dizer no momento da morte, o meu último murmúrio – “ar’fadas de Coimbra e queijinhos de Alcobaça” logo seguido de “Ágafresquiiiinha”).
Uma Beira Alta de barragens, pontes e albufeiras bem bonitas (com o comboio a passar quase pelo meio de povoações de casas de pedra) mas que, no resto do trajecto mostrava uma Serra da Estrela que fazia invariavelmente o meu pai dizer que o nosso era um país árido, anunciava o jantar e, a seguir, a Espanha, olhada da cama da carruagem-cama para onde nos recolhíamos, era a emoção de uma lua cheia vista a dois pela janela (em viagens mais tardias, com outras companhias que não a dos pais...) ou, depois de se avistar o tempo de uma piscadela de olho o castelo iluminado de Ciudad Rodrigo, essencialmente, uma interminável linha telefónica que “subia” ou “descia” ao longo da janela do compartimento e acompanhava, poste a poste, a ferrovia, iluminada por uma intensa lua que difundia uma luz que apenas algumas luzes esparsas – momentos mágicos – de casas isoladas interrompia por breves segundos (e cujo crescendo indicava inequivocamente a aproximação de uma cidade e de uma estação, que também a diminuição do ritmo do “dadang-dadang” dos rodados nos carris, anunciava ao reflectir sonoramente a diminuição da velocidade do comboio expresso).
A França era, - temos que o confessar – a monotonia da floresta das “Landes” bordalesas mas, antes de mais, o excelente pequeno almoço de que podíamos usufruir na carruagem-restaurante, e a minha mãe fazendo comparações impiedosas mas verdadeiras na altura (continuou a fazê-las pela vida fora, mesmo quando já não correspondiam à verdade, provando que muitas vezes a memória dos sentidos é mais forte do que a realidade) entre a qualidade das frutas, dos doces e do pão franceses face aos seus congéneres ibéricos (dos “croissants” nem se fala – mas ainda hoje é assim). E depois a vegetação luxuriante da região basca francesa, que tinha porém dificuldade em esconder os “camping” da zona, inúmeros em França (turismo de massas oblige) mas ainda quase desconhecidos em Portugal.
A França era, também o orgulho de viajar em comboios modernos, de carruagens prateadas, pronto a deslizar a velocidades desconhecidas na Ibéria e que faziam do “Sud-Expresso” o comboio mais rápido da Europa, logo a seguir ao ultra-famoso “Mistral” ( e mesmo primeiro em percursos de mais de 500 kms, “ex-aequo” apenas com outro nome mítico da ferrovia, o americano “Twentieth Century Limited”).
Passadas as “Landes” o incessante olhar pela janela do comboio revelava estações que ocupavam imensidões, as suas linhas com material ferroviário moderno e variado oferecido ao olhar ávido do amigo dos caminhos de ferro (e mesmo, um tempo, a linha abandonada do “Aerotrain Bertin”, uma das falhadas aventuras mais interessantes do caminho de ferro), a incrível oportunidade de ver comboios a fazerem ultrapassagens e outros comboios e as sensações feéricas da aproximação a Paris, com os postos de agulheiros a pontuarem a chegada a “Paris Austerlitz”, indicando os kilómetros que faltavam e que ritmavam a preparação da saída para a cidade, com a descida das bagagens das bagageiras, a contagem destas e a procura ansiosa do “porteur”, chamado pela janela e que leva os “colis” ao táxi com o qual acabava a viagem.
Não, Scotty, do not beam me up. Deixa-me o prazer de me deslocar lentamente de um local a outro, absorvendo os sons, os sabores, as paisagens diversas. Que pena que eu seja o último viajante….
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