Nas conversas destes dias tinha que sobressair esta estranhíssima ocorrência do Airbus caído nos Alpes com 149 inocentes. E muito mais estranha quando se perfila no horizonte que a queda do aparelho teria por origem uma intenção criminosa do co-piloto - apanhado numa teia mental de suicídio\homicídio que não tenho competência para julgar.
Não há poema que nos salve destas ocorrências? Salvar não salva, mas pelo menos ajuda-nos a viver com estas angústias.
Recordo Herberto Helder nesta síntese definidora da sua obra ("Público" de 26 de Março):
No texto de abertura de "Ou o poema contínuo" (2001) – redução da sua “poesia toda” a uma “súmula”, não a uma antologia – Herberto Helder designa a época como a de um tempo de redundância: “O livro de agora pretende então aceitar a escusa e, em tempos de redundância, estabelecer apenas as notas impreteríveis para que da pauta se erga a música”.
Insinua-se aqui uma atitude radical que o poeta seguiu rigorosamente, ao fazer com que a sua obra existisse apenas por si mesma, impermeável a interferências mundanas, erguendo-se fora – e contra – o ruído do mundo.
Há alturas - como estas em que reflectimos sobre as desgraças - onde também gostaríamos que a nossa vida seguisse existindo apenas por si mesma, impermeável a interferências mundanas... mas não é possível.
Do grande Poeta aqui deixo uma simples (aparentemente) Bicicleta:
Lá vai a bicicleta do poeta em direcção
ao símbolo, por um dia de verão
exemplar. De pulmões às costas e bico
no ar, o poeta pernalta dá à pata
nos pedais.
Uma grande memória, os sinais
dos dias sobrenaturais e a história
secreta da bicicleta. O símbolo é simples.
Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais —
lá vai o poeta em direcção aos seus
sinais. Dá à pata
como os outros animais.
O sol é branco, as flores legítimas, o amor
confuso. A vida é para sempre tenebrosa.
Entre as rimas e o suor, aparece e des
aparece uma rosa. No dia de verão,
violenta, a fantasia esquece.
Entre
o nascimento e a morte, o movimento da rosa floresce
sabiamente. E a bicicleta ultrapassa
o milagre. O poeta aperta o volante e derrapa
no instante da graça.
De pulmões às costas, a vida é para sempre
tenebrosa. A pata do poeta
mal ousa agora pedalar. No meio do ar
distrai-se a flor perdida. A vida é curta.
Puta de vida subdesenvolvida.
O bico do poeta corre os pontos cardeais.
O sol é branco, o campo plano, a morte
certa. Não há sombra de sinais.
E o poeta dá à pata como os outros animais.Se a noite cai agora sobre a rosa passada,
e o dia de verão se recolhe
ao seu nada, e a única direcção é a própria noite
achada?
De pulmões às costas, a vida
é tenebrosa. Morte é transfiguração,
pela imagem de uma rosa. E o poeta pernalta
de rosa interior dá à pata nos pedais
da confusão do amor.
Pela noite secreta dos caminhos iguais,
o poeta dá à pata como os outros animais.
Se o sul é para trás e o norte é para o lado,
é para sempre a morte.
Agarrado ao volante e pulmões às costas
como um pneu furado,
o poeta pedala o coração transfigurado.
Na memória mais antiga a direcção da morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros animais,
dá à pata nos pedais para um verão interior.
Herberto Helder, Cinco Canções Lunares
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