quinta-feira, fevereiro 05, 2015

Ser bem tratado

Ontem à tarde fiz horas para a reunião da AICEP na Horta, onde a Paulinha me fez um arroz de cabeças de robalo,  ao momento , que estava de lamber os beiços. Comi-o com um Dão bom e barato , o Reserva de 2011 da Quinta do Escudial.

Ao lado falavam vários VIP's, entre os quais um dos candidatos mais fortes ao lugar de PR (por parte do PS) e, noutra mesa, o sempre bem vindo secretário-geral da AHRESP, infatigável lutador contra o IVA restauracional que tanto oprime os donos das tascas como os clientes das mesmas.

Estando sozinho e sem feitio para me pôr a ouvir conversas alheias (embora ainda tivesse notado que o nome de "Guterres" foi algumas vezes avançado...) tive o direito de pôr a imaginação a devanear e o mote para essa "viagem" foi o arroz de peixe que estava no tacho. E recordei-me desta história:

Há longos anos, no restaurante Funil da Elias Garcia - hoje transvestido  é uma sombra do que foi, uma coisinha com atavios à moderna baixa  e comida a condizer - estava também sozinho a matutar que mal teríamos feito aqui nos CTT para nos porem a trabalhar na Terça Feira de Carnaval (naquele tempo era assim, todos tinham esse feriado menos o pessoal dos correios).

O senhor Caetano ( um dos sócios antigos, o outro era o cozinheiro, ambos "fugitivos" do Polícia) estava habituado à minha presença e ao facto de eu normalmente ir ali comer a cabeça de pescada, de garoupa ou de cherne cozida com todos os acompanhamentos.

 Nessa Terça Feira, vendo-me macambúzio e sem peixe  como o habitual  na montra para oferecer (tinha passado o Domingo, fechavam à Segunda , e depois a Terça era feriado para quase toda a gente)  perguntou-me se eu gostava de arroz de cabeça de peixe.

Já naquele tempo eu  gostava de tudo que fosse bem feito ( até de pancada, dependendo de quem a dava). Pelo que a resposta foi afirmativa. Mas com algum receio olhava pelo canto do olho para a montra onde costumavam estar as "peixas" inteiras, mas que naquele dia mostrava apenas bacalhau, ovas, chocos e lulas...

Depois de mais de meia hora (fazer as coisas "ao momento" significa mesmo isso. E quem não sabe esperar por esses mimos é porque não os merece) lá veio o tacho de barro com perfume de coentros, rescendendo.

Terá sido à segunda ou à terceira garfada que percebi que no tacho...não havia peixe. Havia ameijoa da nossa, da cristã, que no Funil usavam na "marinheira de ameijoas",  havia gamba dita "de Cascais" por ser fresca, descascada,  existiam ainda por cima 2 ou 2 lombos de lagostins. E na calda do arroz notava-se bem o "piso" das cabeças das gambas e dos lagostins...

Lembro-me que nessa altura (seria para o final dos anos 80) costumava acompanhar o peixe fresco com o Branco seco da Quinta de  Camarate, que  ainda não tinha alvarinho no lote.

Admirado pela "largueza" mas contido nos reparos, regalei-me e pedi a conta à espera de uma "enormidade". E como um dia não são dias e perdido já eu julgava estar, antes disso ainda afinfei com um malte velho.

O valor a cobrar pelo "arroz de peixe" foi mais ou menos o que eu costumava pagar pela cabeça de pescada cozida! E quando questionei o Sr. Caetano , a resposta que levei foi esta:

-"Então um cliente como o senhor entra aqui, eu não tenho na montra o que costuma comer e há-de ser mal tratado? Ora essa!"

 - "Mas então porque não disse que o arroz era de marisco ( e todo fresco!)?"

- " Porque não queria preocupá-lo com o preço...Depois já não apreciava o arrozinho..."

Era o Sr. Caetano um beirão "à maneira", um homem onde se demonstravam as maiores virtudes dos"serranos" que têm também os seus defeitos, mas a receber são inexcedíveis.

E devo dizer aos amigos leitores que  uma das coisas boas que a vida me deu é que ainda hoje, em mais do que uma casa de comer onde vou, ainda sinto que este tipo de tratamento é possível.

Que grandes pessoas em qualquer país deste mundo , com tanta qualidade!

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