E a lembrar-me do "testamento" de Herberto Helder, escrito quando o grande poeta fez 83 anos.
Não pedirei desculpa pela crueza das palavras, porque elas não são minhas, que não tenho arte para tal.
Aqui fica no entanto um grito de alma de uma das mais importantes figuras da nossa cultura:
Irmãos humanos que depois de mim
vivereis,
eu que fui obrigado a viver dobrados
os oitenta,fazei por acabar mais cedo vossos trabalhos cegos,
porque nestas idades já não nunca,
nem leituras embrumadas,
nem crenças, nem política das formas, nem poemas no futuro, nem
visitas extraterrestres de mulheres
exorbitantemente
nuas, cruas, sexuais, luminosas,
Só vê-las um pouco, sim, mas vê-las
também cansa,
é como trabalhar: stanca,lavorare stanca,
queríamos tanto acreditar no milagre isabelino do pão e das rosas,
e só tínhamos que perder a alma,
hoje talvez eu mesmo acreditasse melhor, mas foi-se tudo,
enfim esses jogos gerais, ao tempo que se esgotaram!
e o mundo é pequeníssimo, dá-se-lhe corda, dá-se uma volta,
meia volta, e já era,
irmãos futuros do gênio de Villon e do meu gênero baixo,
não peço piedade, apenas peço:
inclitamente vergonhosa,
que em testamento vos deixou esta montanha de merda:
o mundo como vontade e representação que afinal é como era,
como há-de ser:
Alta,
alta montanha de merda — trepai por ela acima até à vertigem,
merda eminentíssima:
daqui se vêem os mistérios, os mesteres, os ministérios,
cada qual obrando a sua própria magia:
merda que há-de medrar melhor na memória do mundo.
Herberto Helder
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