quarta-feira, abril 01, 2015

Desconfianças

O gato desconfia do cão, o periquito não confia no gato. São predadores uns dos outros. É compreensível. Se um deles não desconfiasse acabava comido.

Havia um merceeiro na nossa rua, o Sr. Cunha, que desconfiava de toda a gente. Ouviram bem. Não era ao contrário. O cliente pagava e o merceeiro contava os trocos vezes sem conta, sempre à espera de ser enganado. Quando eu lá ia chegava a apalpar-me os bolsos à saída para ver se eu não levava rebuçados do frasco que tinha aberto no balcão. Teria  6 ou 7 anos e por vezes levava mesmo daqueles rebuçados nos bolsos. Mas isso não vem ao caso. O fornecedor não pode duvidar do cliente.

O dono da oficina de mecânica que arranjava o velho chasso do meu Pai (um Fiat 124 1600 com  carburadores duplos "weber"que, se não estivessem bem afinados, gastava uns 15 litros aos 100 ) enganava-o quase sempre que o carro lá ia. O meu Pai sabia e , na volta, enganava-o a ele também quando iam à caça, com as despesas dos hotéis, dos cotos e das viagens. Como ficavam as contas ao fim do ano  não sei bem. Mas nenhum se queixava...

Muitas vezes ouvi o meu sogro a vangloriar-se que enganava os taberneiros porque não enchia até cima os garrafões de vinho. Mas essa pequena vigarice era amplamente amenizada pelos lautos almoços de cabrito, queijo da serra e presunto que antecediam o fecho do "negócio". A minha sogra dizia que ele gastava mil escudos para vender 700 mil réis (não sei se se lembram destes "réis").

Neste caso, e por muito que os taberneiros "desconfiassem", nenhum deles deixava de lá estar sempre na quinta à hora do almoço combinado. Seria sinal que o negócio não era assim tão mau para eles.

Lembro-me que gostavam do vinho carrascão do meu sogro porque à conta dessa cor carregada (e pouco própria do Dão tradicional) podiam alegremente "desdobrar" os penalties lá nas tascas com alguma água da chuva. Sempre dizendo piedosamente às filhas e mulheres que serviam ao balcão e à mesa:
-" Os dois primeiros copos são do bom. A partir do terceiro dá-lhes de mistura para não lhes fazer mal. E a nós faz bem."

Dizem-me  - porque não bebo dessas coisas fora de casa à noite - que nalguns lugares da "movida" o whisky novo com coca-cola (mesmo com castelo) não será muito canónico... E mesmo quando se pede para abrir uma garrafa há que ter algum cuidado com a rolha dita "inviolável".

E esta matéria não é nova. O director de marketing da Distillers Company  (Johnnie Walker) constumava ficar no Estoril uma ou duas semanas no Verão e lembro-me de o ouvir dizer (lá para os anos 70) que se bebia no mundo cerca de duas vezes mais  Red Label do que aquele que era produzido...

Dava para desconfiar. E se calhar ainda dá.

Eu não sou grande "desconfiador". Por norma acredito em tudo o que me dizem.
Faço minha a norma antiga de La Rochefoucauld:  -"É mais vergonhoso desconfiar-se dos amigos do que ser por eles enganado."

Mas está o caldo entornado quando me enganam em três coisas - peixe de aquicultura por peixe de mar, lampreia de barragem canadiana ou francesa pela nossa e perdiz de aviário por perdiz selvagem.

Digam a verdade sobre o que vendem ao cliente. Posso até comer à mesma se forem honestos. Por exemplo, a perdiz de aviário feita de escabeche. E há peixe de aquicultura que disfarça bem, se for bem grelhado. Na Lampreia de barragem é que não toco.

Mas dar conta do engano "depois de estar no prato"? É das poucas vezes em que armo confusão. Delicadamente, mas armo.

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