terça-feira, outubro 14, 2008

O Manto da Fantasia


A adopção, como normas de vida, do Hedonismo (mais virado para o prazer imediato e para a posse de objectos e coisas) ou do Epicurismo (filosofia também ligada à procura do prazer mas introduzindo-lhe matizes mais espirituais), sempre foi considerada por certos quadrantes da sociedade como uma coisa “grossa” que lembrava Sodoma e Gomorra, a Roma antiga, banquetes com vomitórios ao lado, e envolvimentos orgiásticos com todos os sexos à mistura, incluindo ovelhas, bicicletas, e por aí fora…

Nada de mais errado. O Sibarita - praticante um pouco mais tardio da filosofia de Epicuro - é um esteta do prazer. A sua forma de estar na vida tem a ver com a busca do prazer, sem dúvida, mas do prazer requintado, do prazer que tanto se retira da audição de uma peça musical que nos comove, como daquele que extraímos da simples observação de um pôr do sol no mar, num fim de tarde de Junho. O Sibarita planeia uma refeição de acordo com o dinheiro (pouco ou muito) que tem para gastar, mas fazendo sempre dela um acontecimento marcante pela elegância da ementa e pela cultura e arte de conversar da companhia que escolheu para sentar à sua mesa.

Para este tipo de mortal – tal como para todos os outros – passam-se coisas boas e más neste mundo que afectam a sua vida. Simplesmente ele toma a decisão estudada e premeditada de só dar importância às coisas boas, ignorando as menos boas, ou dando-lhes apenas a importância mínima que merecem, como, por exemplo, passar rapidamente o cheque para pagar o IRS e nem mais um segundo do seu precioso tempo dedicar a pensar nessa “incumbência”.

Dirão alguns que estaremos a meio caminho de um autismo “colorido” que, em extremo, pode levar que um tal alheamento da vida de todos os dias se torne mesmo perigoso…digno até de um sanatório. Mas adiante…

No meio das crises que sempre assolaram a alma lusa, desde o ultimato até à desbunda do João Franco, passando pela inépcia da 1ª República e pelo sufoco do consulado salazarento e da guerra colonial - sobretudo este último - talvez tivesse sido esta capacidade para imaginar um outro mundo melhor e pensar na vida de todos os dias apenas como um mal necessário para “pagar a renda e pôr pão na mesa” que nos tenha conservado menos mal…

Isso, e o Eusébio, claro, figura maior dos idos de 60. Nele o nosso imaginário colectivo de grandeza transformou-se em pessoa real, um clarão de vermelho e negro no cinzento mundo onde tínhamos que penar.

O velho Eça, que da vida sabia quase tudo, soube bem interpretar este tipo de filosofia nos seus escritos, nomeadamente quando – na Ilustre Casa de Ramires – põe um dos personagens (acho que era o Titó) a lamentar o facto do amigo Videirinha, guitarrista, não poder ter um emprego “daqueles sem muito trabalho, nalguma repartição” onde se pudesse dedicar a aprimorar o estudo da guitarra para deleite da trupe que o escutava durante as noites de rambóia.

O “emprego na repartição” - ao qual ele daria o menor tempo e esforço possível - não serviria para mais do que “ganha-pão” que permitisse ao guitarrista amigo estudar e praticar a sua arte, essa sim a sua verdadeira ocupação! E logo que Gonçalo Ramires é eleito deputado elege o amigo Videirinha para amanuense de administração do concelho de Vila Clara.

Não era o grande Fernando Pessoa também ele um amanuense que nos intervalos do seu enfadonho emprego destilava dos mais belos poemas que se escreveram em português? Onde os pensaria? Em que locais distantes de beleza e de criatividade andaria o seu espírito enquanto uma mão classificava facturas e a outra compunha cartas comerciais?

Dá que pensar…

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