Com a história da galinha atrevida (cognome "Reserva de 2009") que meti no facebook vi-me inundado de queixumes da malta mais dada à protecção dos animais contra o sacrifício gastronómico da ave para deleite de um "grupo de matulões".
"Coitada da Galinha!" e "Malvados! Fazerem isto ao animalzinho!" foram expressões utilizadas.
Eu não sei bem onde é que estas boas pessoas compram as pernas e coxas de frango, já convenientemente embaladas e rotuladas, mas imagino que seja nalgum supermercado. Onde - até ver e existir prova em contrário - os animais teriam sido primeiro mortos e só depois esquartejados. Para bem deles.
Mas como ninguém vê o momento da morte está tudo bem. Leva-se para casa sem perder mais nenhum pensamento com o assunto. E idem, idem, para bifes, filetes de pescada, rojões ou perna de borrego.
Lembro-me bem das minhas primeiras idas à quinta dos meus sogros e como tudo (ou quase tudo, o bacalhau já lá chegava em múmia) era morto na altura. E nunca mais me esqueço que o meu Sogro armava-se em valente para assumir as funções de algoz, bebia três ou quatro copos para arranjar coragem e empunhar a faca, mas depois da preparação e apesar do vinhito, acabava por pedir à mulher que fosse ela a tomar conta do assunto...
E dizia a lacrimejar "coitadas das pitinhas! (ou dos coelhos, ou do que fosse) Andavam por ali atrás de mim como se fossem pessoas de família..."
Mas esses sentimentos nunca o impediram de ser o primeiro a sentar-se à mesa e a "aviar" o cadáver da "pessoa de família" (salvo seja) com gosto e considerável apetite.
É preciso saber matar e saber cozinhar. Falem com os pescadores e os caçadores.
Dito isto, é evidente que a mim - menino da linha - nunca me coube semelhante tarefa crua e dura.
O mais perto que estive de semelhante barbárie foi quando era obrigado a segurar numa das pernas do porco na altura da matança tradicional. Lá na dita quinta, está claro!
Onde, aliás, passei pela vergonha (numa véspera de Natal) de acordar a minha mulher e levá-la à cozinha, ao alguidar monstruoso de cobre onde já repusavam as duas peruas bêbedas, num banho de água, vinho branco , rodelas de limão e de laranja:
-" Oh Natália vê lá que estas peruas não se podem comer !Estão todas amarelas da icterícia!"
De facto, o estúpido do cascaense nunca tinha visto peruas caseiras, alimentadas a milho e a alface, e pensava que depois de depenadas as ditas eram todas brancas azuladas, como as dos tais supermercados...
Dito isto, recupero uma Receita tradicional de Galinha de Cabidela, que fiz algumas vezes na aldeia da Beira Alta (tendo à frente os ingredientes todos bem mortos e quietos! Está claro!):
Aproveita-se o sangue de uma galinha já com alguma idade e peso , deitando-o numa tigela com três colheres de sopa de vinagre para que não coalhe.
Numa panela de fundo espesso fazemos uma puxadinha com azeite , cebola e alhos picados. Juntamos a galinha cortada aos bocados pequenos e os miúdos. Uma tirita de bacon magro ou presunto gordo de qualidade, aos pedaçinhos, fica sempre bem. Acrescentamos ainda à puxada uma folha de louro partida e uma malagueta desfeita com os dedos. Deixamos refogar temperando antes com uma mão cheia de sal e um copo pequeno de vinho branco. Depois da cebola alourar apuramos (estufamos) em lume baixo.
Em estando o estufado feito tapamos a galinha com água quente e deixamos a cozer até a galinha ficar tenra.
Depois de cozida como desejamos retiramos os pedaços da galinha e deitamos o arroz com mais água até fazer a proporção de uma chávena de arroz para três de água.
Quando o arroz estiver quase cozido (nota-se que vai subindo e enchendo o bago), juntamos o sangue e os pedaços da galinha. misturamos bem e deixamos apurar.
Bom Proveito e, ao comerem, em vez de pensarem na galinha pensem antes num vinho que acompanhe bem o sabor algo adstringente da cabidela...
Sugestões? Um Verde Tinto, um Tinto Bairrada, ou até um Tinto novo do Douro, todos eles taninosos que bastem.
Mas para mim, se fosse no Verão, estaria na altura de beber um espumante tinto de qualidade. Recomendo o da Mata Fidalga.
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Um comentário:
São conhecidas e respeitadas – mas nem sempre partilhadas - as objecções de muitos dos nossos amigos a este fenómeno do ”galinocídio”. O que nenhum de nós conhecerá é a opinião dos galinácios relativamente às maldades que o Homo Sapiens lhes infringe e que Voltaire nos relata na sua obra “Diálogo do Frango e da Franga” a que pertence o pequeno extracto que se segue:
FRANGO - Oh, meu Deus, minha galinha, estás tão triste; que tens?
FRANGA - Meu caro amigo, pergunta-me, antes, pelo que não tenho. Uma maldita criada tomou-me entre os joelhos, mergulhou-me uma longa agulha no cu, agarrou a minha matriz, enrolou-a à volta da agulha, arrancou-a e deu-a de comer ao gato. E eis-me incapaz de receber os favores do cantor lírico do dia e de pôr ovos.
FRANGO - Ai!, minha querida, eu perdi mais do que tu; fizeram-me uma operação duplamente cruel: nem tu nem eu voltaremos a ter consolação neste mundo; fizeram-vos franga e a mim frango. A única ideia que serenou o meu estado deplorável foi a que ouvi, há alguns dias, junto à minha capoeira, debatida entre dois abades italianos a quem tinha sido perpetrado o mesmo ultraje para que pudessem cantar diante do papa com uma voz mais cristalina.
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