A marquesa de Alvenga, para o examinar de perto, pediu o braço a Pedro, e foi aplicar-lhe, como a um mármore de museu, a sua luneta de ouro.
- É de apetite! Exclamou ela. É uma imagem!... E são amigos, são
amigos, Pedro?
Obviamente que uma Marquesa - mesmo que fosse da Malveira e não de Alvenga - nunca teria dito, (pelo menos naquele tempo, porque atualmente já não juro):
Só de o ver já fico com Gula!! Exclamou ela. Apetecia-me comê-lo mesmo sem tempero!... E onde é que ele mora Pedro? Tens o Telemóvel?
Nota-se assim que existe algum requinte, algum recato, alguma distância e alguma elegância na palavra "Apetite". "Gula", por seu lado, e retirando o sentido carinhoso e mais virado para a doçura que se dá ao termo "Guloso" na intimidade, parece uma palavra mais adaptada para conversa de taberna e de canjirões de tintol do que de "bistrot" e garrafas de clarete (para não sairmos do tempo do Eça).
A Gula é um apetite desmesurado que se manifesta pela voracidade, pela sofreguidão com que um matulão se atira a qualquer coisa que lhe encha as medidas. Carne, peixe, bacalhau ou queijo da serra da Estrela, morre tudo ali mesmo, haja ou não molho de piri-piri!
Neste sentido, o "guloso" nem os ossos deixa à perna de cabrito , de tal forma esganado se apresenta à mesa!
Da Gula nasce o arrôto e manifesta-se a azia. Como consequência distende-se o estômago e prepara-se a sesta da tarde, completa com roncos e suspiros em acompanhamento. Para não falar de outros sons que se originam, lá mais para as bandas das traseiras...
Quando se satisfaz o Apetite com moderação sai o impetrante da mesa calmo, satisfeito e pronto a dedicar-se às artes ou às ciências. E até a outras actividades mais movimentadas. Na cama ou mesmo em cima do que estiver mais a jeito, balcão de cozinha ou fardo de palha.
Ter Gula é transvestir-se em Gargântua ou em Pantagruel. Ter Apetite é mais próprio de Brillat-Savarin.
A plebeia "galga" não se deve confundir com a "gula". É uma questão de escala mas também de atitude! A "galga" está para a "gula", como um Jack Russel Terrier está para um Dogue de Bordéus.
A um civilizado homem de mesa admite-se nalgumas ocasiões a galga, mas a gula não se perdoa.
Vendo a Ana Sidorova naquela coisa esquisita do "curling" nos JO Inverno, a um gajo normal pode dar-lhe a "galga" de comer alguma coisa fresquinha. Lamber um gelado do Santini, ou outra coisa assim...
E depois disto tudo, seguro que esclareci as principais diferenças entre ambos os termos, resta-me desejar aos meus leitores que na vossa vida de todos os dias tenham alguma "galga". E que sejam muito mais "apetitosos" do que "gulosos".
Pelo menos na Europa. Porque em certos locais recônditos de África (mesmo na CPLP !!) e lá para a Oceânia não me parece muito conveniente um gajo ser "apetitoso"... É que ainda o comem! No sentido literal e não no ordinário do termo. Que aqui seria bem mais positivo. Mais vale ter cú (mesmo dorido) que não ter . Salvo seja!
Um comentário:
Hector Abad Faciolince, escritor e jornalista colombiano versado nesta matéria dos 'apetites', divulgou uma singela receita de Tortilha de Batata incluída na sua recente obra "Receitas de Amor para Mulheres Tristes":
«Ensina-lhe a descascar as batatas e a cortá-las em fatias nem finas nem grossas. Ensina-o também a pô-las na frigideira com o azeite ainda frio. Diz-lhe que não é assim tão fácil bater muito bem dez ovos numa tigela grande, que não devem restar vestígios de gema nem de clara, que a porção de sal é subtil e importante, assim como o momento em que às batatas se deve juntar um única cebola às rodelas, mais uma mão de salsa picada muito miudinha. Diz-lhe também como, depois de se obter um ligeiro dourado, um bronzeado leve como da Costa do Sol no Outono, as batatas e a cebola frita se colam, e como as deve misturar, em frio, com os ovos batidos. Depois ensina-o a depositar a mistura com cautela em pouco azeite, e diz-lhe que te avise quando começar a secar por cima. Dar a volta à tortilha, como já te disse, é a única coisa difícil. Mais uns minutos e diz-lhe que ponha a tortilha numa travessa, com fatias de pão. [Ingredientes: 10 ovos; 1kg de batatas; 1 cebola grande; 3 colheres de sopa de azeite; 8 fatias de pão; salsa; sal e pimenta q.b.]»
Autor com vasta obra publicada e premiada - Palabras sueltas, Asuntos de un hidalgo disoluto, Fragmentos de amor furtivo, El amanecer de un marido, Malos Pensamientos – Hector A. Faciolince deixa aqui algumas pistas que mesmo uma Marquesa de Massamá não deixaria, por certo, de ensaiar…
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